terça-feira, 31 de março de 2009

Trina e una

A primeira coisa que há de espantar o leitor é o título, que lhe anuncia (posso dizê-lo desde já) três mulheres e uma só mulher. Há dois modos de explicar uma tal anomalia: — ou duas mulheres entram no conto indiretamente, são apenas citadas, e puxam os cordéis da ação do outro lado da página — ou as mulheres não passam de três gradações, três estados sucessivos da mesma pessoa. São os dois modos aparentes de definir o título, e, entretanto, não é nenhum deles, mas um terceiro, que eu guardo comigo, não para aguçar a curiosidade, mas porque não há analisá-lo sem expor o assunto.

Vou expor o assunto. Comecemos por ela, a mulher una e trina. Está sentada numa loja, à rua da Quitanda, ao pé do balcão, onde há cinco ou seis caixas de rendas abertas e derramadas. Não escolhe nada, espera que o caixeiro lhe traga mais rendas, e olha para fora, para as pedras da rua, não para as pessoas que passam. Veste de preto, e o busto fica-lhe bem, assim comprimido na seda, e ornado de rendas finas e vidrilhos. Abana-se por distração; talvez olhe também por distração. Mas, seja ou não assim, abana-se e olha. Uma ou outra vez, recolhe a vista para dentro da loja, e percorre os demais balcões onde se acham senhoras que também escolhem, conversam e compram; mas é difícil ver nos movimentos da dama a menor sombra de interesse ou curiosidade. Os olhos vão de um lado a outro, e a cabeça atrás deles, sem ânimo nem vida, e depois aos desenhos do leque. Ela examina bem os desenhos, como se fossem novos, levanta-os, desce-os, fecha as varetas uma por uma, torna a abri-las, fecha-as de todo e bate com o leque no joelho. Que o leitor se não enfastie com tais minúcias; não há aí uma só palavra que não seja necessária.

Aqui estão estas que me parece que hão de agradar, disse o caixeiro voltando.

A senhora pega das novas rendas, examina-as com vagar, quase digo com preguiça. Pega delas entre os dedos, fitando-lhes muito os olhos; depois procura a melhor luz; depois compara-as às outras, durante um largo prazo. O caixeiro acompanha-lhe os movimentos, ajuda-a, sem impaciência, porque sabe que ela há de gastar muito tempo, e acabar comprando. É freguesa da casa. Vem muitas vezes estar ali uma, duas horas, e às vezes mais. Hoje, por exemplo, entrou às duas horas e meia; são três horas dadas, e ela já comprou duas peças de fita; é alguma coisa, podia não ter escolhido nada.

Os desenhos não são feios, disse ela; mas não haverá outros?

Vou ver.

Olhe, desta mesma largura.

Enquanto o caixeiro vai ver, ela passa as outras pelos olhos, distraidamente, recomeça a abanar-se, e afinal torna a cravar os olhos nas pedras da rua. As pedras é que não podem querer-lhe mal, porque os olhos são lindos, e o que está escondido dentro, como dizia Salomão, não parece menos lindo. São também claros, e movem-se por baixo de uma testa olímpica. Para avaliar o amor daqueles olhos às pedras da rua, é preciso considerar que o raio visual é muita vez atravessado por outros corpos, calças masculinas, vestidos femininos, um ou outro carro, mas é raro que os olhos se desviem mais de alguns segundos. Às vezes olham tão de dentro que nem mesmo isso; nenhum corpo lhes interrompe a vista. Ou de cansados, ou por outro motivo, fecham-se agora, lentamente, lentamente, não para dormir ou cochilar, pode ser que para refletir, pode ser que para coisa nenhuma. O leque, a pouco e pouco, vai parando, e descamba, aberto mesmo, no regaço da dona. Mas aí volta o caixeiro, e ela torna ao exame das rendas, à comparação, ao reparo, a achar que o tecido desta é melhor, que o desenho daquela é melhor, e que o preço daquela outra é ainda melhor que tudo. O caixeiro, inclinado, risonho, informa, discute, demonstra, concede, e afinal conclui o negócio; a dona leva tantos metros de uma e tantos de outra.

Comprou; agora paga. Tira a carteirinha da bolsa, saca um maçozinho de notas, e, vagarosamente, puxa uma, enquanto o caixeiro faz a conta a lápis. Dá-lhe a nota, ele pega nela e nas rendas compradas e vai ao caixa; depois traz o troco e as compras.

Não há de querer mais nada? pergunta ele.

Não, responde ela sorrindo.

E guarda o troco, enfia o dedo no rolozinho das compras, disposta a sair, mas não sai, deixa-se estar sentada. Parece-lhe que vai chover; di-lo ao caixeiro, que opina de modo contrário, e com razão, pois o tempo está seguro. Mas pode ser que a dama dissesse aquilo, como diria outra coisa qualquer, ou nada. A verdade é que tem o rolo enfiado no dedo, o leque fechado na mão, o chapelinho de sol em pé, com a mão sobre o cabo, prestes a sair, mas sem sair. Os olhos é que tornam à rua, às pedras, fixos como uma idéia de doido. Inclinado sobre o balcão, o caixeiro diz-lhe alguma coisa, uma ou outra palavra, para corresponder tanto ou quanto ao sorriso maligno de um colega, que está no balcão fronteiro. É opinião deste que a dama em questão, que não quer outra pessoa que a sirva, senão o mesmo caixeiro, anda namorada dele. Vendo que ela está pronta para ir-se e não vai, sorri velhacamente, mas com disfarce, olhando para as agulhas que serve a uma freguesa. Daí as palavras do outro, acerca disto ou daquilo, palavras que a dama não ouve, porque realmente tem os olhos parados e esquecidos.

Já falei das calças masculinas, que de quando em quando cortam o raio visual da nossa dama. Toda a gente que sabe ler, que conhece a alma do licenciado Garcia, compreendeu que eu não apontei uma tal circunstância para ter o vão gosto de dizer que andam calças na rua, mas por um motivo mais alto e recôndito; para acompanhar de longe a entrada de um homem na loja. Puro efeito de arte; cálculo e combinação de gestos. São assim as obras meditadas; são assim os longos frutos de longa gestação. Podia fazer entrar este homem sem nenhum preparo anterior, fazê-lo entrar assim mesmo, de chapéu na mão, e cumprimentar a dama, que lhe pergunta como está, chamando-lhe doutor; mas eu pergunto se não é melhor que o leitor, ainda sem o saber, esteja advertido de uma tal entrada. Não há duas respostas.

Se ela lhe chamou doutor, ele chamou-lhe D. Clara, falaram dez minutos, se tanto, até que ela dispôs-se definitivamente a sair; ao menos, disse-o ao recém-chegado. Este era um homem de trinta e dois a trinta e quatro anos, não feio, antes simpático que bonito, feições acentuadas do Norte, estatura mediana, e um grande ar de seriedade. A vontade que ele tinha era de ficar ali com ela, ainda uma meia hora, ou acompanhá-la à casa. A prova está no ar comovido com que lhe fala, dependente, suplicante quase; os modos dela é que não animam nada. Sorriu uma ou duas vezes, para ele, mas um sorriso sem significação, ou com esta significação: —sei o que queres; continua a andar”.

Bem, disse ele; se me dá licença...

Pois não. Até quando?

Não vai hoje ao Matias?

Vou... Até lá.

Até lá.

Saiu ele, e foi esperar pouco adiante, não para acompanhá-la, mas para vê-la sair, para gozá-la com os olhos, vê-la andar, pisar de um modo régio e tranqüilo. Esperou cinco minutos, depois dez, depois vinte; aos vinte e um minutos é que ela saiu da loja. Tão agitado estava ele que não pôde saborear nada; não pôde admirar de longe a figura, realmente senhoril, da nossa dama. Ao contrário, parece que até lhe fazia mal. Mordeu o beiço, por baixo do bigode, e caminhou para o outro lado, resolvendo não ir ao Matias, resolvendo depois o contrário, desejoso de tirar aquela mulher de diante de si e não querendo senão fixá-la diante de si por toda a eternidade. Parece enigmático, e não há nada mais límpido.

Clara foi dali para a rua do Lavradio. Morava com a mãe. Eram cinco horas dadas, e D. Antônia não gostava de jantar tarde; mas já devia esperar isto mesmo, pensava ela: a filha só voltava cedo quando ela a acompanhava; em saindo só, ficava horas e horas.

Anda, anda, é tarde, disse-lhe a mãe.

Clara foi despir-se. Não se despiu às pressas, para condescender com a mãe, ou fazer-se perdoar a demora; mas, vagarosamente. No fim reclinou-se no sofá com os olhos no ar.

Nhanhã não vai jantar? perguntou-lhe uma negrinha de quinze anos, que a acompanhara ao quarto.

Não respondeu; posso mesmo dizer que não ouviu. Tinha os olhos, não já no ar, como há pouco, mas numa das flores do papel que forrava o quarto; pela primeira vez reparou que as flores eram margaridas. E passou os olhos de uma a outra, para verificar se a estrutura era a mesma, e achou que era a mesma. Não é esquisito? Margaridas pintadas em papel. Ao mesmo tempo que reparava nas pinturas, ia-se sentindo bem, espreguiçando-se moralmente, e mergulhando na atonia do espírito. De maneira que a negrinha falou-lhe uma e duas vezes, sem que ela ouvisse coisa nenhuma; foi preciso chamá-la terceira vez, alteando a voz:

Nhanhã!

Que é?

Sinhá velha está esperando para jantar.

Desta vez, levantou-se e foi jantar. D. Antônia contou-lhe as novidades de casa; Clara referiu-lhe algumas reminiscências da rua. A mais importante foi o encontro do Dr. Severiano. Era assim que se chamava o homem que vimos na loja da rua da Quitanda.

É verdade, disse a mãe, temos de ir à casa do Matias.

Que maçada! suspirou Clara.

Também você tudo lhe maça! exclamou D. Antônia. Pois que mal há em passar uma noite agradável, entre meia dúzia de pessoas? Antes de meia-noite está tudo acabado.

Este Matias era um dos autores da situação em que o Severiano se acha. O ministro da Justiça era o outro. Severiano viera do norte entender-se com o governo, acerca de uma remoção: era juiz de direito na Paraíba. Para se lhe dar a comarca que ele pediu, tornava-se necessário fazer outra troca, e o ministro disse-lhe que esperasse. Esperou, visitou algumas vezes o Matias, seu comprovinciano e advogado. Foi ali que uma noite encontrou a nossa Clara, e ficou um tanto namorado dela. Não era ainda paixão; por isso falou ao amigo com alguma liberdade, confessou-lhe que a achava bonita, chegaram a empregar entre eles algumas galhofas maduras e inocentes; mas afinal, perguntou-lhe o Matias:

Agora falando sério, você por que é que não casa com ela?

Casar?

Sim, são viúvos, podem consolar-se um ao outro. Você está com trinta e quatro, não?

Feitos.

Ela tem vinte e oito; estão mesmo ajustadinhos. Valeu?

Não valeu.

Matias abanou a cabeça: — Pois, meu amigo, lá namoro de passagem é que você não pilha; é uma senhora muito séria. Mas, que diabo! Você com certeza casa outra vez; se há de cair em alguma que não mereça nada, não é melhor esta que eu lhe afianço?

Severiano repeliu a proposta, mas concordou que a dama era bonita. Viúva de quem? Matias explicou-lhe que era viúva de um advogado, e tinha alguma coisa de seu; uma renda de seis contos. Não era muito, mas com os vencimentos de magistrado, numa boa comarca, dava para pôr o céu na terra, e só um insensato desprezaria uma tal pepineira.

Cá por mim, lavo as mãos, concluiu ele.

Podes limpá-las à parede, replicou Severiano rindo.

Má resposta; digo má por inútil. Matias era serviçal até ao enfado. De si para si entendeu que devia casá-los, ainda que fosse tão difícil como casar o Grão-Turco e a república de Veneza; e uma vez que o entendia assim, jurou cumpri-lo. Multiplicou as reuniões íntimas, fazia-os conversar muitas vezes, a sós, arranjou que ela lhe oferecesse a casa, e o convidasse também para as reuniões que dava às vezes; fez obra de paciência e tenacidade. Severiano resistiu, mas resistiu pouco; estava ferido, e caiu. Clara, porém, é que não lhe dava a menor animação, a tal ponto que se o ministro da Justiça o despachasse, Severiano fugiria logo, sem pensar mais em nada; é o que ele dizia a si mesmo, sinceramente, mas dada a diferença que vai do vivo ao pintado, podemos crer que fugiria lentamente, e pode ser até que se deixasse ficar. A verdade é que ele começou a não perseguir o ministro, dando como razão que era melhor não exaurir-lhe a boa vontade; importunações estragam tudo. E voltou-se para Clara, que continuou a não o tratar mal, sem todavia passar da estrita polidez. Às vezes parecia-lhe ver nos modos dela um tal ou qual constrangimento, como de pessoa que apenas suporta a outra. Ódio não era; ódio, por quê? Mas ninguém obsta uma antipatia, e as melhores pessoas do mundo podem não ser arrastadas uma para a outra. As maneiras dela na loja vieram confirmar-lhe a suspeita; tão seca! tão fria!

Não há dúvida, pensava ele; detesta-me; mas que lhe fiz eu?

Entre ir e não ir à casa do Matias, Severiano adotou um meio-termo: era ir tarde, muito tarde. A razão secreta é tão pueril que não me animo a escrevê-la; mas o amor absolve tudo. A secreta razão era dissimular quaisquer impaciências namoradas, mostrar que não fazia caso dela, e ver se assim... Compreenderam, não? Era a aplicação daquele pensamento, que não sei agora, se é oriental ou ocidental, em que se compara a mulher à sombra: segue-se a sombra, ela foge; foge-se, ela segue. Criancices de amor — ou para escrever francamente o pleonasmo: criancices de criança. Sabe Deus se lhe custou esperar! Mas esperou, lendo, andando, mordendo o bigode, olhando para o chão, chegando o relógio ao ouvido para ver se estava parado. Afinal foi; eram dez horas, quando entrou na sala.

Tão tarde! disse-lhe o Matias. Esta senhora já tinha notado a sua falta.

Severiano cumprimentou friamente, mas a viúva, que olhava para ele de um modo oblíquo, conheceu que era afetação. Parece que sorriu, mas foi para dentro; em todo o caso, pediu-lhe que se sentasse ao pé dela; queria consultá-lo sobre uma coisa, uma teima que tivera na véspera com a mulher do chefe de polícia. Severiano sentou-se trêmulo.

Não nos importa a matéria da consulta; era um pretexto para conversação. Severiano demorou o mais que pôde a solução pedida, e quando lhe deu, ela pensava tão pouco em ouvi-la que não sabia já de que se tratava. Olhava então para o espelho ou para as cortinas; creio que era para as cortinas.

Matias, que os espreitara de longe, veio ter com eles, sentou-se e declarou que trazia uma denúncia na ponta da língua.

Diga, diga, insistiu ela.

Digo? perguntou ele ao outro.

Severiano enfiou, e não respondeu logo, mas, teimando o amigo, respondeu que sim. Aqui peço perdão da frivolidade e da impertinência do Matias; não hei de inventar um homem grave e hábil só para evitar uma certa impressão às leitoras. Tal era ele, tal o dou. A denúncia que ele trazia era a da partida próxima do Severiano, mentira pura, com o único fim de provocar da parte de D. Clara uma palavra amiga, um pedido, uma esperança. A verdade é que D. Clara sentiu-se penalizada. Quê? ia-se embora? e para não voltar mais?

Afinal serei obrigado a isso mesmo, disse Severiano: não posso ficar toda a vida aqui. Já estou há muito, a licença acaba.

Vê? disse Matias voltando-se para a viúva.

Clara sorriu, mas não disse nada. Entretanto, o juiz de direito, entusiasmado, confessou que não iria sem grandes saudades da corte. Levarei as melhores recordações da minha vida, concluiu.

O resto da noite foi agradável. Severiano saiu de lá com as esperanças remoçadas. Era evidente que a viúva chegaria a aceitá-lo, pensava ele consigo; e a primitiva idéia do ódio era simplesmente insensata. Por que é que lhe teria ódio? Podia ser antipatia, quando muito; mas nem era antipatia. A prova era a maneira por que o tratou, parecendo-lhe mesmo que, à saída, um aperto de mão mais forte... Não jurava, mas parecia-lhe...

Este período durou pouco mais de uma semana. O primeiro encontro seguinte foi em casa dela, onde a visitou. Clara recebeu-o sem alvoroço, ouviu-lhe dizer algumas coisas sem lhe prestar grande atenção; mas, como no fim confessou que lhe doía a cabeça, Severiano agarrou-se a esta razão para explicar uns modos que traziam ares de desdém. O segundo encontro foi no teatro.

Que tal acha a peça? perguntou ela logo que ele entrou no camarote.

Acho-a bonita.

Justamente, disse a mãe. Clara é que está aborrecida.

Sim?

Cismas de mamãe. Mas então parece-lhe que a peça é bonita?

Não me parece feia.

Por quê?

Severiano sorriu, depois procurou dar algumas das razões que o levavam a achar a peça bonita. Enquanto ele falava ela olhava para ele abanando-se, depois os olhos amorteceram-se-lhe um pouco, finalmente ela encostou o leque aberto à boca, para bocejar. Foi, ao menos, o que ele pensou, e podem imaginar se o pensou alegremente. A mãe aprovava tudo, porque gostava do espetáculo, e tanto mais era sincera, quanto que não queria vir ao teatro; mas a filha é que teimou até o ponto de a obrigar a ceder. Cedeu, veio, gostou da peça, e a filha é que ficou aborrecida, e ansiosa de ir embora. Tudo isso disse ela rindo ao juiz de direito; Clara mal protestava, olhava para a sala, abanava-se, tapava a boca, e como que pedia a Deus que, quando menos, a não destruir o universo, lhe levasse aquele homem para fora do camarote. Severiano percebeu que era demais e saiu.

Durante os primeiros minutos, não soube ele o que pensasse; mas, afinal, recapitulou a conversa, considerou os modos da viúva, e concluiu que havia algum namorado.

Não há que ver, é isto mesmo, disse ele consigo; quis vir ao teatro, contando que ele viesse; não o achando, está aborrecida. Não é outra coisa.

Era a segunda explicação das maneiras da viúva. A primeira, ódio ou aversão natural, foi abandonada por inverossímil; restava um namoro, que não só era verossímil, mas tinha tudo por si. Severiano entendeu desde logo que o único procedimento correto era deixar o campo, e assim fez. Para escapar às exortações de Matias, não lhe diria nada, e passou a visitá-lo poucas vezes. Assim se passaram cinco ou seis semanas. Um dia, viu Clara na rua, cumprimentou-a, ela falou-lhe friamente, e foi andando. Viu-a ainda duas vezes, uma na mesma loja da rua da Quitanda, outra à porta de um dentista. Nenhuma alteração para melhor; tudo estava acabado.

Entretanto, apareceu o despacho do Severiano, a remoção de comarca. Ele preparou-se para seguir viagem, com grande espanto do amigo Matias, que imaginava o namoro a caminho, e cria que eles haviam chegado ao período da discrição. Quando soube que não era assim, caiu das nuvens. Severiano disse-lhe que era negócio acabado; Clara tinha alguma aventura.

Não creio, reflexionou Matias; é uma senhora severa.

Pois será uma aventura severa, concordou o juiz de direito; em todo caso, nada tenho com isto, e vou-me embora.

Matias refutou a opinião, e acabou dizendo que uma vez que ele recusava, não faria mais nada — exceto uma coisa única. Essa coisa, que ele não disse o que era, foi nada menos que ir diretamente à viúva e falar-lhe da paixão do amigo. Clara sabia que era amada, mas estava longe de imaginar a paixão que o Matias lhe pintou, e a primeira impressão foi de aborrecimento.

Que quer que lhe faça? perguntou ela.

Peço-lhe que reflita e veja se um homem tão distinto não é um marido talhado no céu. Eu não conheço outro tão digno...

Não tenho vontade de casar.

Se me jura que não casa, retiro-me; mas se tiver de casar um dia, por que não aproveita esta ocasião?

Grande amigo é o senhor do seu amigo.

E por que não seu?

Clara sorriu, e apoiando os cotovelos nos braços da poltrona, começou a brincar com os dedos. A teima começava a impacientá-la. Era capaz de ceder, só para não ouvir falar mais nisto. Afinal agarrou-se à impossibilidade material; ele vai para uma comarca interior, ela nunca sairia do Rio de Janeiro.

Tal é a dúvida? perguntou o Matias.

Parece-lhe pouco?

De maneira que, se ele aqui ficasse, a senhora casava?

Casava, respondeu Clara olhando distraidamente para os pingentes do lustre.

Distração do diabo! Foi o que a perdeu, porque o Matias fez daquela resposta um protocolo. A questão era alcançar que o Severiano ficasse, e não gastou dez minutos nessa outra empresa. Clara, apanhada no laço, fez boa cara, e aceitou o noivo sorrindo. Tratou-o mesmo com tais agrados que ele pensou nas palavras do amigo; acreditou que, em substância, era grandemente amado, e que ela não fizera mais do que ceder aos poucos.

Mas essa terceira razão era tão contrária à realidade como as outras duas; — nem ela o amava, nem lhe tinha ódio, nem amava a outro. A verdade única e verdadeira é que ela era um modelo acabado de inércia moral; e, casou para acabar com a importunação do Matias. Casaria com o diabo, se fosse necessário. Severiano reconheceu isso mesmo com o tempo. Uma vez casada, Clara ficou sendo o que sempre fora, capaz de gastar duas horas numa loja, quatro num canapé, vinte numa cama com o pensamento em coisa nenhuma.

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