terça-feira, 31 de março de 2009

Sem olhos

O chá foi servido na saleta das palestras íntimas às quatro visitas do casal Vasconcelos. Eram estas o sr. Bento Soares, sua esposa D. Maria do Céu, o bacharel Antunes e o desembargador Cruz. A conversa, antes do chá, versava sobre a última soirée do desembargador; quando o criado entrou, passaram a tratar da morte de um conhecido, depois das almas do outro mundo, de contos de bruxas, finalmente de lobisomem e das abusões dos índios.

Pela minha parte, disse o sr. Bento Soares, nunca pude compreender como o espírito humano pôde inventar tanta tolice e crer no invento. Vá que uma ou outra criança dê crédito às suas próprias ilusões; para isso mesmo é que são crianças. Mas, que um homem feito...

Que tem isso? observou o desembargador apresentando a xícara ao criado para que lhe repetisse o chá; a vida do homem é uma série de infâncias, umas menos graciosas que as outras.

Queres mais chá, Maria? perguntou a dona da casa à esposa de Bento Soares que acabava de beber a última gota do seu.

Aceito.

O bacharel Antunes apressou-se a receber a xícara de D. Maria do Céu, com uma cortesia e graça, que lhe rendeu o mais doce dos sorrisos.

Eu acompanho o desembargador, disse Bento Soares.

Enquanto o bacharel Antunes ampliava ao marido de Maria do Céu o obséquio que acabava de prestar a esta, com a mesma solicitude, mas sem receber o mesmo nem outro sorriso, e passava ao criado a xícara vazia, Bento Soares prosseguia em suas idéias acerca das abusões humanas. Bento Sores estava profundamente convencido que o mundo todo tinha por limites os do distrito em que ele morava, e que a espécie humana aparecera na terra no primeiro dia de abril de 1832, data de seu nascimento. Esta convicção diminuía ou antes eliminava certos fenômenos psicológicos e reduzia a história do planeta e de seus habitantes a uma certidão de batismo e vários acontecimentos locais. Não havia para ele tempos pré-históricos, havia tempos pré-soáricos. Daí vinha que, não crendo ele em certas lendas e contos da carocha, mal podia compreender que houvesse homem no mundo capaz de ter crido neles uma vez ao menos.

A conversa, porém, bifurcou-se; enquanto o desembargador referia a Bento Soares e ao dono da casa algumas notícias relativas a crenças populares antigas e modernas, as duas senhoras conversavam com o bacharel, sobre um ponto de toilette... Maria do Céu era uma mulher bela, ainda que baixinha, ou talvez por isso mesmo, porquanto as feições eram consoantes à estatura: tinha uns olhos miúdos e redondos, uma boquinha que o bacharel comparava a um botão de rosa, e um nariz que o poeta bíblico só por hipérbole poderia comparar à torre de Galaad. A mão, que essa, sim, era um lírio dos vales — lilium convalium, parecia arrancada a alguma estátua, não de Vênus, mas de seu filho; e eu peço perdão desta mistura de coisas sagradas com profanas, a que sou obrigado pela natureza mesma de Maria do Céu. Quieta, podiam pô-la num altar; mas se movia os olhos, era pouco menos que um demônio. Tinha um jeito peculiar de usar deles que enfeitiçou alguns anos antes a gravidade de Bento Soares, fenômeno que o bacharel Antunes achava o mais natural do mundo. Vestia nessa noite um vestido cor de pérola, objeto da conversa entre o bacharel e as duas senhoras. Antunes, sem contestar que a cor de pérola ia perfeitamente à esposa de Bento Soares, opinava que era geral acontecer o mesmo às demais cores; donde se pode razoavelmente inferir que em seu parecer a porção mais bela de Maria não era o vestido, mas ela mesma.

Uma contestação, em voz mais alta, chamou a atenção deles para o grupo dos homens graves. Bento Soares dizia que o desembargador mofava da razão, afiançando acreditar em almas do outro mundo; e o desembargador insistia em que a existência dos fantasmas não era coisa que absolutamente se pudesse negar.

Mas, desembargador, isto é querer supor que somos uns beócios. Pois fantasmas...

Não me dirá nada de novo, interrompeu Cruz; sei o que se pode dizer contra os fantasmas; não obstante, existem.

Como as bexigas; também se diz muita coisa contra elas.

Fantasmas! exclamou Maria do Céu. Pois há quem tenha visto fantasmas?

É o desembargador quem o diz, observou Vasconcelos.

Deveras?

Nada menos.

Na imaginação, disse o bacharel.

Na realidade.

Os ouvintes sorriam; Maria fez um gesto de desdém.

Se a entrada na Relação dá em resultado visões dessa natureza, declaro que vou cortar as asas às minhas ambições, observou o bacharel olhando para a esposa de Bento Soares, como a pedir-lhe aprovação do dito.

Os fantasmas são fruto do medo, disse esta, sentenciosamente. Quem não tem medo não vê fantasmas.

Você não tem medo? perguntou a dona da casa.

Tanto como deste leque.

Sempre há de ter algum, opinou Vasconcelos.

Não tenho medo de nada nem de ninguém.

Pode ser, interveio o desembargador; mas se visse o que eu vi uma vez, estou certo de que ficaria apavorada.

Alguma bruxa?

O diabo?

Um defunto à meia-noite?

Um duende?

Cruz empalidecera.

Falemos de outra coisa, disse ele.

Mas o auditório tinha a curiosidade aguçada, e o próprio mistério e recusa do desembargador faziam crescer o apetite. Os homens insistiram; as senhoras fizeram coro com eles. Cruz imolou-se ao sufrágio universal.

O que eu vi foi há muitos anos, disse ele; ainda assim conservo a memória fresca do que me aconteceu. Não sei se poderia ir até o fim; e desde já estou certo de que vou passar uma triste noite...

Uma risadinha de Maria do Céu interrompeu o desembargador.

Prepare o auditório! disse ela. Vamos ver que a montanha dá à luz um ratinho.

Alguns sorriam; mas o desembargador estava sério e pálido. Bento Soares ofereceu-lhe uma pitada de rapé, enquanto Vasconcelos acendia um charuto. Fez-se grande silêncio; só se ouvia o tic-tac do relógio e o movimento do leque de Maria do Céu. O desembargador olhou para os interlocutores, como a ver se era possível evitar a narração; mas a curiosidade estava tão pendente de todos os olhos, que era impossível resistir.

Vá lá! disse ele. Contarei isto em duas palavras.

Quando eu estudava em S. Paulo raras vezes gozava as férias todas na fazenda de meu pai; ia a Cantagalo passar algumas semanas e voltava logo para o Rio de Janeiro, aonde me chamava o meu primeiro e último namoro, paixão de quatro anos, que a Igreja consagrou e só a morte extinguiu. Nas férias do terceiro ano fui morar no primeiro andar de uma casa da Rua da Misericórdia. No segundo morava um homem de quarenta anos que parecia ter mais de cinqüenta, tão alquebrado e encanecido estava. Éramos os dois moradores únicos, salvo o meu pajem, que fazia o número três. O vizinho de cima não tinha criado.

A primeira vez que o vi foi logo no dia seguinte da minha entrada na casa. Ao passar pelo corredor dei com ele na escada, que ia do primeiro para o segundo andar, de pé, com um livro aberto nas mãos. Tinha um pé no quinto e outro no sexto degrau. Fiquei a olhar de baixo para ele durante algum tempo; não o conhecendo, entrei a suspeitar se seria algum ladrão. O pajem explicou-me que era o morador de cima.

Dois dias depois, estando eu à noite em casa, perto das onze horas a ler na minha sala, senti alguém bater-me à porta; fui abrir; era o vizinho, que descera, com um livro na mão, talvez o mesmo que lia dois dias antes na escada, não sei.

Venho incomodá-lo, não? disse ele.

Fiz um gesto duvidoso, e fiquei a olhar para ele como quem espera uma explicação.

O morador da loja, continuou ele, disse-me hoje que o senhor é estudante. Talvez me possa explicar uma coisa. Sabe hebraico?

Não.

É pena! disse ele consternado.

Ficou alguns instantes silencioso, a olhar para o livro e para o teto. Depois fitou-me, e disse:

Ando a ver se meto dente numa passagem de Jonas.

Dizendo isto, sentou-se abrindo o livro sobre os joelhos. Joelhos chamo eu, porque é esse o nome daquela região; mas o que ele tinha naquele lugar das pernas eram dois verdadeiros pregos, tão magro estava. A cara angulosa e descarnada, os olhos cavos, o cabelo hirsuto, as mãos peludas e rugosas, tudo fazia dele um personagem fantástico. Esteve algum tempo ainda silencioso, até que continuou:

Há aqui um versículo de Jonas, é o 11 do cap. IV, em que leio: “E então eu não perdoarei a grande cidade de Nínive, onde há mais de cento e vinte mil homens, que não sabem discernir entre a sua mão direita e a sua mão esquerda?”.* Como entende o senhor este versículo?

A idéia que o vizinho era doido apoderou-se logo de meu espírito. Que outra coisa seria, vindo consultar a semelhante hora, a uma vizinho de três dias, sobre um texto de Jonas? Também eu não tinha medo nesse tempo — tal qual como a sra. D. Maria do Céu —, deixei-me estar quieto na cadeira, a olhar sem responder, contendo uma grande vontade de rir.

Que lhe parece? repetiu o vizinho.

Que quer o senhor que me pareça?

Homens que não sabem discernir a mão direita da esquerda”; — frase que, geralmente, tem um sentido óbvio, e vem a ser nada menos que isto: o profeta refere-se às crianças ninivitas. Jeová quer perdoar a cidade por amor dos meninos que ela encerra. Mas eu dou do texto uma interpretação que vai assombrar o mundo.

Sim?

Jonas não alude às crianças, mas aos canhotos que são os homens que não podem discernir a direita da esquerda. Sendo assim, veja o senhor a importância da minha interpretação. Duas coisas se concluem dela: 1ª que os ninivitas eram geralmente canhotos; 2ª que o ser canhoto era no entender dos hebreus um grande mérito. Desta última conclusão nasceu uma terceira, a saber, que chamar canhoto ao diabo é estar fora do espírito bíblico. Isto é claro como água e evidente como a luz.

A profunda convicção com que ele disse tudo isto, e o ar de triunfo com que ficou a olhar para mim, confesso que me impressionaram singularmente. Não sabia que dizer; o melhor era concordar, declarando que a sua opinião era por força verdadeira.

Não lhe parece? disse ele. Contudo, não sendo eu forte no hebraico, desejava consultar alguém que me dissesse se o texto original está bem traduzido na Vulgata, e se a expressão bíblica é essa ou outra diferente. Liquidado este ponto, escreverei um livro. Afiança-me que não sabe hebraico?

Não sei sequer o alfabeto.

Nesse caso há de perdoar.

Dizendo isto, ergueu-se, fez-me uma cortesia e deu um passo para a porta. Ali parou e voltou-se.

Esquecia-me dizer-lhe o meu nome; devia de ser a primeira coisa. Chamo-me Damasceno Rodrigues, moro há três anos aqui em cima, onde estou às suas ordens. Viva!

Não esperou que lhe dissesse o meu nome; curvou-se e saiu. Imaginem facilmente como fiquei; a vontade de rir foi o primeiro efeito; o segundo foi uma mistura de pena, receio e curiosidade. No dia seguinte, disse ao pajem que tirasse informações acerca de Damasceno Rodrigues. Tirou-as, e o que liquidei delas foi que o meu vizinho morava aí havia três anos, como dissera; que era um velho médico, sem clínica; que vivia pacificamente, saindo apenas para ir comer a uma casa de pasto da vizinhança ou ler duas horas na biblioteca pública; enfim, que no bairro ninguém o tinha por doido, mas que algumas velhas o supunham ligado ao diabo. Esta crença, comparada com a idéia que o homem tinha a respeito do Canhoto, dava bem para uma anedota romântica, que eu podia escrever logo depois que voltasse a S. Paulo; tal foi o motivo que me levou a visitá-lo alguns dias depois.

O segundo andar era antes um sótão puxado à rua; compunha-se de uma sala, uma alcova e pouco mais. Subi. Achei-o na sala, estirado em uma rede, a olhar para o teto. Tudo ali era tão velho e alquebrado como ele; três cadeiras incompletas, uma cômoda, um aparador, uma mesa, alguns farrapos de um tapete, ligados por meia dúzia de fios, tais eram as alfaias da casa de Damasceno Rodrigues. As janelas, que eram duas, adornavam-se com umas cortinas de chita amarela, rotas a espaços. Sobre a cômoda e a mesa havia alguns objetos disparatados; por exemplo, um busto de Hipócrates ao pé de um bule de louça, três ou quatro bolos, meio pote de rapé, lenços e jornais. No chão também havia jornais e livros espalhados. Era ali o asilo do vizinho misterioso.

Achei-o, como lhes disse, estirado na rede, a olhar para o teto. Não me sentiu entrar; mas eu falei-lhe e ele ergueu um pouco a cabeça.

Quem é? disse ele.

Eu.

O senhor?

Seu vizinho de baixo.

Ah! disse ele erguendo-se; pode entrar.

Não se incomode; vinha apenas pagar-lhe a visita.

Damasceno tinha-se levantado; e das cadeiras ofereceu-me a melhor, isto é, a que não tinha costas, porque das outras duas, uma estava exausta de palhinha e a outra possuía três pés somente.

O riso de Damasceno era pior que a seriedade; sério, dava ares de caveira; rindo, havia nele um gesto diabólico; a tudo resiste porém a ambição do escritor juvenil. Eu queria uma novela, e estava disposto a conversar com o diabo em pessoa. Para dizer alguma coisa, falei-lhe na passagem de Jonas.

Descobriu alguma coisa? perguntei-lhe.

Nada, tornou ele, mas cuida que pensei mais em semelhante assunto?

Supunha.

Qual! No dia seguinte deixei-o de lado.

Entretanto, creio que era importante decidir se realmente o nome de Canhoto dado ao diabo...

Damasceno interrompeu-me com uma risadinha sardônica e gelada que me tapou a boca. Não tive ânimo de continuar e faltava-me assunto para entretê-lo. Ele, entretanto, meteu as mãos na algibeira das calças e começou a andar de um para outro lado, ora cabisbaixo e silencioso, ora olhando para o teto e murmurando alguma coisa que eu não podia perceber. Havia no rosto daquele homem, além da velhice precoce, uma expressão de tristeza e amargura que os olhos não podiam contemplar impunemente. Ao mesmo tempo era tão extraordinária a figura e tão singulares os costumes dele, que a gente tinha prazer em o conversar e atrair, quando menos por sair um pouco da vulgaridade dos outros homens.

Damasceno passeou cerca de oito minutos, sem me dizer palavra. Ao cabo deles, parou defronte de mim.

Mancebo, disse ele, quais são as suas idéias a respeito da lua?

Poucas... algumas notícias apenas.

Sei, disse ele desdenhosamente, o que anda nos compêndios. Pífia ciência é a dos compêndios! O que eu lhe pergunto...

Adivinho.

Diga.

Quer saber se também suponho que o nosso satélite seja habitado?

Qual! são devaneios, são conjecturas... A lua, meu rico vizinho, não existe, a lua é uma hipótese, uma ilusão dos sentidos, um simples produto da retina dos nossos olhos. É isto que a ciência ainda não disse; é isto o que convém proclamar ao mundo. Em certos dias do mês, o olho humano padece uma contração nervosa que produz o fenômeno lunar. Nessas ocasiões, ele supõe que vê no espaço um círculo redondo, branco e luminoso; o círculo está nos próprios olhos do homem.

Pode ser.

Nem é outra coisa.

Donde se conclui que todos somos lunáticos, aventurei eu galhofeiramente.

Talvez, redagüiu, ele, rindo muito.

Depois de rir, caiu na rede; as pernas, que andavam à larga nas calças, aliás estreitas, cruzavam-se à maneira oriental, e ele ficou sentado defronte de mim.

Lunáticos! repetiu ele.

Dada a sua teoria, expliquei eu.

Teoria de lunático?

Perdão.

Já me não ouvia; com os dedos no ar fazia figuras extravagantes, retas, curvas, ângulos e triângulos, rindo à toa, com o riso pálido e sem expressão dos mentecaptos. Não havia dúvida; era uma alma sem consciência. Arrependi-me de alguma coisa que disse menos pensada, e procurei ao mesmo tempo um meio de sair dali sem o irritar. Não me foi difícil; três vezes me despedi, sem que ele me respondesse; saí sem objeção.

Chegando ao meu aposento, senti alguma coisa semelhante ao prazer de um homem que foge de um perigo ou a um incidente desagradável. Efetivamente a conversa de um homem sem juízo não era segura. Eu cuidava ter diante de mim um espírito original; saía-me um louco; o interesse diminuía ou mudava de natureza. Determinei acabar ali as minhas relações com Damasceno.

Durante quinze dias encontrei-o duas vezes, na escada; cumprimentou-me e falou-me como se tivera intatas todas as molas do cérebro. Queixou-se-me apenas de alguma dor de cabeça e palpitações do coração.

Temo que isto vá a acabar, disse ele à segunda vez.

Não diga isso!

Verá; estou à beira da eternidade; vou dar o salto mortal.

Não alimentei a conversa e saí. Nessa noite contou-me o pajem que Damasceno Rodrigues me procurara com muitas instâncias dizendo que desejava confiar-me um segredo. Era provavelmente alguma nova fantasia semelhante à de Jonas e à da lua, e eu não queria animar os desvarios de um pobre velho. Não lhe mandei dizer que estava em casa nem o procurei. Alta noite, e estando a ler, ouvi um gemido no andar de cima. Subi devagarinho, colei o ouvido à porta da sala de Damasceno, mas nada mais ouvi.

Soube no dia seguinte que Damasceno adoecera. Fui vê-lo pela volta do meio-dia. Como ele nunca fechava a porta, não foi preciso incomodá-lo, para lá entrar. Achei-o deitado na cama, com os olhos cerrados e os braços estendidos ao longo do corpo e por fora da coberta. Abriu os olhos, e sorriu ao ver-me.

Que tem? perguntei.

Uma opressão no peito.

Tomou alguma coisa?

Que me fizesse mal?

Não; algum remédio.

Não tomei nada.

Bem; é preciso ver o que isso é; vou mandar vir um médico.

Damasceno tinha os olhos cravados na parede; não me respondeu. Ia sair, para dar ordens ao meu criado, quando vi o enfermo sentar-se na cama, e olhando para a parede que lhe ficava ao lado dos pés, clamar aflito:

Não! ainda não! Vai-te! Depois, daqui a um ano!... a dois... a três... Vai-te, Lucinda! Deixa-me!

Corri a Damasceno, falei-lhe, apalpei-lhe a testa, que estava quente, e obriguei-o a deitar-se. Uma vez deitado, ficou arquejante, a olhar para a sala, sem querer dirigir os olhos para os pés da cama.

O que é que sente? perguntei.

Não disse nada; talvez me não ouvisse. Saí para mandar chamar um médico, e voltei ao quarto do enfermo. O médico veio, examinou-o, interrogou-o, receitou enfim alguma coisa, que imediatamente mandei preparar na mais próxima botica. Mandei a uma casa da vizinhança arranjar caldos e galinha; finalmente dispus-me a não sair de casa nesse dia.

Não contava com o amor; duas linhas escritas em uma folha de papel bordado, como se usava no meu tempo, vieram mudar a resolução em que eu assentara. Saí, depois de fazer muitas recomendações ao criado e prometendo voltar cedo. Às oito horas da noite achava-me em casa; fui ter logo com o doente. Achei-o sossegado.

Entre, entre, meu amigo, disse ele; deixe-me chamar-lhe assim, porque não tenho ninguém mais a quem dê esse doce nome.

Está melhor?

Estou; mas são melhoras passageiras.

Não diga isso.

São. Isso há de acabar cedo. Sabe o que é a morte?

Imagino.

Não sabe. A morte é um verme, de duas espécies, conforme se introduz no corpo ou na alma. Mata em ambos os casos. Em mim não penetrou no corpo; o corpo geme porque a doença reflete nele; mas o verme está na alma. Nela é que eu o sinto a roer todos os dias.

Pois matemos o verme, disse eu, apresentando-lhe uma colher de remédio.

Damasceno olhou para o remédio e para mim, e sorriu, com uma expressão de tranqüilo ceticismo.

Pobre moço! disse ele, depois de alguns instantes de silêncio.

Vamos!

Logo mais, amanhã, ou depois que eu morrer. Talvez ainda possa fazer algum beneficio ao meu cadáver. A alma não bebe água.

Insisti, mas foi baldado. Damasceno resistiu intrepidamente. Quando as minhas instâncias lhe pareceram excessivas começou a irritar-se, e eu, receoso de algum novo delírio, proveniente da exacerbação, cedi; fui ter com o criado que me referiu haver Damasceno tomado apenas uma colher do remédio e um caldo. Voltei ao quarto, achei-o tranqüilo.

A luz do quarto era pouca, e esta circunstância, ligada ao espetáculo da doença e às feições do pobre velho alienado, não menos que às recordações que já me prendiam a ele, tornara a situação por extremo penosa. Sentei-me ao pé da cama e tomei-lhe o pulso; batia apressado; a testa estava quente. Ele deixou que eu fizesse todos esses exames sem dizer nada. Tinha os olhos no teto e parecia alheio de todo à minha pessoa e à situação. Pouco depois chegou o médico, soube da resistência do enfermo em continuar a tomar o remédio, examinou-o, fez um gesto de desânimo, e ao sair disse-me que o homem estava perdido.

A perspectiva não era para mim agradável. Não podia razoavelmente desampará-lo e tinha talvez de assistir à sua morte naquela noite. Chamei o criado e escrevi um bilhete a dois colegas de S. Paulo, residentes na corte, pedindo-lhes que viessem passar a noite comigo. O criado saiu e eu sentei-me outra vez ao pé da cama.

No fim de alguns minutos, vi que Damasceno se agitava. Perguntei-lhe o que tinha.

Nada, respondeu ele, mudo de posição. Que horas são?

Nove e um quarto.

E o senhor pretende passar a noite comigo?

Naturalmente.

O rosto do enfermo iluminou-se.

Boa alma! exclamou ele.

Depois procurou a minha mão e teve-a presa entre as suas algum tempo, olhando para mim com uma expressão de agradecimento, que lhe parecia tornar bela a fisionomia seca e dura.

Que lhe fiz eu para merecer tanta dedicação? perguntou ele ao cabo de alguns minutos de silêncio.

Não falemos disso.

Que idade tem?

Vinte e dois anos.

Feliz! feliz!

Calou-se outra vez e pareceu concentrar-se de novo. Pensei que iria dormir, mas ele voltou-se para mim dizendo:

Quero pagar-lhe os seus benefícios.

Pagará depois.

Não; há de ser já.

Ergueu o corpo, apoiando o cotovelo na cama, pegou-me na mão e cravou em mim os olhos, acesos de uma luz repentina e única.

Mancebo, disse ele, com a voz cava; não olhe nunca para a mulher do seu próximo.

Sossegue, disse eu.

Sobretudo não a obrigue a olhar para o senhor. Comprará por esse preço a paz de sua vida toda.

A gravidade com que ele proferiu estas palavras excluía toda a idéia de loucura. A própria fisionomia parecia revelar o regresso da consciência. Olhei para ele algum tempo sem responder, nem ousar pedir-lhe explicação. Damasceno fitou o ar com expressão melancólica, abanou a cabeça três vezes e suspirou. Depois a cabeça caiu sobre o ombro, e ele ficou algum tempo quieto. Ouvindo o sino das dez horas, abriu os olhos e voltou-se para mim.

Por quê se não vai deitar?

Não tenho sono.

Perder uma noite por causa de um desconhecido!

Não se preocupe comigo; descanse, que é melhor.

Damasceno meteu a mão debaixo do travesseiro, como procurando alguma coisa. Era uma chave. Deu-ma.

Abra-me a gavetinha da cômoda, a do lado da rua.

E depois?

Tire de lá uma caixinha.

Obedeci. A caixinha era de couro e teria um palmo de comprimento. Quando lha levei, ele pô-la sobre a cama e olhou mudo para ela. Depois, tocou em uma pequena mola; a caixa abriu-se, e ele tirou de dentro um pequeno maço de papéis.

Se eu morrer, disse ele, queime isto.

Feche tudo, é melhor.

Não é preciso. O que aí está é um segredo, mas eu não quero morrer sem lho revelar. Não lhe disse há pouco que não consentisse nunca em olhar ou ser olhado pela mulher de seu próximo? Pois bem; saberá o resto.

A curiosidade pendurou-se-me dos olhos e, apesar da pouca luz da alcova, é possível que ele reparasse nisto, porque vi-o sorrir com uma expressão maliciosa e discreta.

São papéis de família, continuou Damasceno; coisas que só a mim interessam. Há aqui, porém, uma coisa que o senhor pode ver desde já.

Dizendo isto, destacou do maço de papéis uma miniatura e deu-ma pedindo que a visse. Aproximei-me da luz e vi uma formosa cabeça de mulher, e os mais expressivos olhos que jamais contemplei na minha vida. Ao restituir a miniatura reparei que ele a desviou apressadamente dos olhos metendo-a logo, com a mão trêmula, entre os papéis.

Viu-a?

Vi.

Não me diga nada do que lhe parece. Imagino qual será a sua impressão. Calcule qual seria a minha há quinze anos, diante do original. Ela tinha vinte anos; e eu vinte e cinco...

Damasceno interrompeu-se; arrependia-se talvez; e eu não ousava, em tal situação, mostrar-me indiscreto e curioso. Ele entretanto atava o maço de papéis e a miniatura com um cadarço velho, e entregou-me tudo.

Guarde. Jura que queimará isso?

Juro.

Guardei no bolso o maço enquanto ele, reclinando o corpo, ficou tranqüilo. Durante cinco minutos nada disse; começou a murmurar palavras sem sentido, com esgares próprios de louco. Esta circunstância chamou-me à realidade. Não seriam os papéis e o retrato coisas sem valor, a que ele em seu desvario atribuía tamanha importância? Damasceno falou de novo.

Guardou?

Guardei.

Deixe ver.

Está aqui, disse-lhe eu, mostrando o embrulho.

Está bem.

E depois de uma pausa:

Eu era moço, ela moça; ambos inocentes e puros. Sabe o que nos matou? Um olhar.

Um olhar?

Era no interior da Bahia. Lucinda casara-se na capital com o dr. Adr... Não importa o nome; era médico como eu, mas rico e dado a estudos de botânica e mineralogia. Andava por Jeremoabo naquele tempo. Eu encontrei-o num engenho e travei relações com ele. A mulher era linda como o senhor viu aí. Ele era sábio, taciturno e ciumento. Havia nela tanta modéstia e recato — talvez medo — que o ciúme dele podia dormir com as portas abertas. Mas não era assim; o marido era cauteloso e suspeitoso; ameaçava-a e fazia-a padecer. Eu percebi isso, e a compaixão apoderou-se de mim. A compaixão é um sentimento pérfido; abstenha-se dele ou combata-o. Quem sabe se a que sente agora por mim não lhe dará mau resultado?

Estremeci ouvindo esta última palavra. Ele parou um instante e continuou:

Lucinda não me olhava nunca. Era medo, era talvez intimação do marido. Se me falava alguma vez era secamente e por monossílabos. Meu coração deixou-se ir da compaixão ao amor pelo mais natural dos declives, amor silencioso, cauto, sem esperança nem repercussão. Um dia, em que a vi mais triste que de costume, atrevi-me a perguntar-lhe se padecia. Não sei que tom havia em minha voz, e certo é que Lucinda estremeceu, e levantou os olhos para mim. Cruzaram-se com os meus, mas disseram nesse único minuto — que digo? nesse único instante, toda a devastação de nossas almas; corando, ela abaixou os seus, gesto de modéstia, que era a confirmação de seu crime; eu deixei-me estar a contemplá-la silenciosamente. No meio dessa sonolência moral em que nos achávamos, uma voz atroou e nos chamou à realidade da vida. Ao mesmo tempo achou-se defronte de nós a figura do marido. Nunca vi mais terrível expressão em rosto humano! A cólera fazia dele uma Medusa. Lucinda caiu prostrada e sem sentidos. Eu, confuso, não me atrevia a explicar nem a pedir explicações. Ele olhou para mim e para ela. Sucedera à primeira manifestação silenciosa da cólera uma coisa mais apagada e mais terrível, um resolução fria e quieta. Com um gesto despediu-me; quis falar, ele impôs silêncio com os olhos. Quase a sair voltei e, apesar da oposição, expus-lhe toda a singularidade de seu procedimento. Ouviu-me calado. Vendo que nada alcançava e não querendo que sobre a infeliz pairasse a menor suspeita, nem que ela padecesse sem outro motivo, mais grave, expus-lhe francamente os meus sentimentos em relação a ele e a ela, a afeição que Lucinda me inspirara, protestando com todas as forças pela inteira dignidade da infeliz. Riu-se, e não me disse nada. Despedi-me e saí...

Estas recordações pareciam abater o enfermo. A voz, ao chegar àquela palavra, era fraca e rouca; ele fez uma longa pausa, cobrindo os olhos com as mãos ocas e trans-parentes. Alguns minutos depois continuou:

Passaram-se algumas semanas. Um dia, levado por necessidade de ofício, fui a Jeremoabo, pensando em Lucinda e um pouco receoso de algum sucesso desagradável. Lucinda havia morrido; e a pessoa que deu esta notícia benzeu-se supersticiosamente e não revelou mais nada, apesar das minhas instâncias. Que teria havido? A idéia de que o marido a houvesse assassinado, apoderou-se de meu espírito; mas eu não ousava formular a pergunta. Indagando mais, ouvi de uns que ela cometera suicídio, de outros que desaparecera; enfim alguns criam que estava apenas doente às portas da morte. Esta diversidade de notícias era claro indício de que alguma coisa grave se passava ou estava passando. Fui ter à propriedade do marido, resoluto a saber tudo e a salvar a vida da inocente, se fosse possível...

Damasceno interrompeu-se de novo. Estava cansado e opresso. Pedi-lhe que suspendesse por algum tempo a narração e guardasse o fim para o dia seguinte, apesar da curiosidade que me picava interiormente. Ao mesmo tempo admirava a perfeita lucidez com que ele me referia aquelas coisas, a comoção da palavra, que nada tinha do vago e desalinhado da palavra dos loucos. Era aquele mesmo o homem que me consultara acerca de Jonas e me expusera uma teoria nova acerca da lua? Enquanto em meu espírito resolvia esta dúvida, Damasceno agitava-se no leito, como buscando melhor cômodo. A vela estava a extinguir-se, acendi outra e fui até à janela ansioso pelo criado e os dois amigos a quem escrevera. A rua estava deserta; apenas ao longe se ouvia o passo de um ou outro transeunte. Voltei ao quarto. Damasceno estava então sentado na cama, um pouco reclinado sobre os travesseiros.

Não tenha medo, disse ele, venha ouvir o resto, que é pouco, mas instrutivo. Fui ter com o médico. Logo que soube que eu o procurava veio receber-me contente. Disse-lhe francamente o que ouvira dizer a respeito da mulher, as opiniões e versões diferentes, a necessidade que havia de instruir o povo da verdade e retirar de sobre ele alguma suspeita terrível. Ouviu-me calado. Logo que acabei, disse-me que eu fizera bem em ir vê-lo; que Lucinda estava viva, mas podia morrer no dia seguinte; que, depois de cogitar na punição que daria ao olhar da moça resolvera castigar-lhe simplesmente os olhos... Não entendi nada; tinha as pernas trêmulas e o coração batia-me apressado. Não o acompanharia decerto, se ele, apertando-me o pulso com a mão de ferro, me não arrastasse até uma sala interior... Ali chegando... vi... oh! é horrível! vi, sobre uma cama, o corpo imóvel de Lucinda, que gemia de modo a cortar o coração. “Vê, disse ele — só lhe castiguei os olhos”. O espetáculo que se me revelou então, nunca, oh! nunca mais o esquecerei! Os olhos da pobre moça tinham desaparecido; ele os vazara, na véspera, com um ferro em brasa... Recuei espavorido. O médico apertou-me os pulsos clamando com toda a raiva concentrada em seu coração: “Os olhos delinqüiram, os olhos pagaram!”

A cabeça do enfermo rolou sobre os travesseiros, en-quando eu, aterrado do que ouvia e da expressão de sincero horror e aparente veracidade com que ele falava, olhei em volta de mim como procurando fugir. Damasceno ficou longo tempo arquejante.

De repente, dando um estremeção ergueu a cabeça e olhou para a parede que ficava do lado inferior da cama:

Vai-te! exclamou ele aflito. Vai-te! ainda não!... Olhe!... Olhe! lá está ela! lá está!... O dedo magro e trêmulo apontava alguma coisa no ar, enquanto os olhos, naturalmente fixos, resumiam todo o terror que é possível conter a alma humana. Insensivelmente olhei para o lugar que ele indicava... Olhei; e podem crer que ainda hoje não esqueci o que ali se passou. De pé, junto à parede, vi uma mulher lívida, a mesma do retrato, com os cabelos soltos, e os olhos... Os olhos, esses eram duas cavidades vazias e ensangüentadas.

Naquela meia luz da alcova, e no alto de uma casa sem gente, a semelhante hora, entre um louco e uma estranha aparição, confesso que senti esvairem-se-me as forças e quase a razão. Batia-me o queixo, as pernas tremiam-me tanto, eu ficara gelado e atônito. Não sei o que se passou mais; não posso dizer sequer que tempo durou aquilo, porque os olhos se me apagaram também, e perdi de todo os sentidos.

Quando dei acordo de mim, estava no meu quarto, deitado, tendo a meu lado os dois amigos que mandara chamar. Ambos procuraram desviar-me do espírito a lembrança do que se passara no quarto de Damasceno; precaução ociosa, porque de nada me lembrava então e o abalo fora tamanho que o passado como que desaparecera. Passei uma noite cruel, entre a agitação e o abatimento. Sobre a madrugada dormi.

Acordei com sol alto. Pude então recordar a cena da véspera, e só a recordação me fazia tiritar e gelar a alma. Quis ir ver o doente porque, apesar dos sucessos anteriores, interessava-me o pobre velho condenado a uma triste visão perpétua.

É tarde! disseram-me.

Por quê?

O doente morreu.

Senti que uma gota me brotava dos olhos, foi a única lágrima que ele obteve dos homens.

Meus colegas referiram-me que a morte sucedera ao romper da manhã, estando presente um deles e o criado. Damasceno morreu a falar das mais desencontradas coisas: de guerras, de meteoros e de S. Tomás de Aquino. Seu último gesto foi para abraçar o sol, que dizia estar diante dele. Morreu enfim, ou antes, restituiu-se à eternidade, segundo a expressão do meu colega, a cujos olhos o doente parecera um esqueleto que visitara por algum tempo a terra.

Não pude assistir ao enterro; estava abatido e doente; mas um dos meus amigos foi até o cemitério. Com um deles fui dormir aquela e as noites seguintes, não podendo passá-las debaixo do mesmo teto em que se dera a terrível aparição. A justiça arrecadou o que pertencia a Damasceno Rodrigues; ele vivia do aluguel de duas casinhas e de algumas apólices, que se lhe encontraram. Não tinha herdeiros.

Só muitos dias depois atrevi-me a ver de novo o retrato da mulher que ele me dera. Ainda assim não foi sem terror, e arrependi-me de o ter feito, porque toda a cena se me reproduziu logo ante os olhos. Era miraculosamente bela a mártir de Jeremoabo; eu compreendia, não só a loucura de Damasceno, mas também a ferocidade do esposo.

O desembargador fez pausa, no meio do geral silêncio de constrangimento que sua narração produzira. Vasconcelos foi o primeiro que falou:

Não podemos duvidar que o senhor visse a figura dessa mulher, disse ele; mas como explicar o fenômeno?

A dificuldade é maior do que pensa, acudiu o desembargador. O episódio teve um epílogo.

Ah!

Quando referi a aparição a algumas pessoas, ninguém me deu crédito; e os mais polidos atribuíam o caso a um pesadelo. Evitei expor-me à incredulidade e ao ridículo. Mais tarde, já senhor de mim, determinei contar a catástrofe de Damasceno em um jornal que escrevíamos na Academia. Tratando de colher alguma coisa mais acerca da infeliz, vim a saber, com grande surpresa, que ele nunca estivera na Bahia, nem saíra do Sul. Já então não era só o interesse literário que me inspirava; era a liquidação de um ponto obscuro e a explicação de um fenômeno. Casara aos vinte e dois anos em Santa Catarina, de onde só saiu aos trinta e três, não podendo, portanto, encontrar-se com o original do retrato, aos vinte e cinco, solteiro, em Jeremoabo; finalmente, a miniatura que me confiara era simplesmente o retrato de uma sobrinha sua, morta solteira. Não havia dúvida: o episódio que ele me referira era uma ilusão como a da lua, uma pura ilusão dos sentidos, uma simples invenção de alienado.

Mas, sendo assim...

Sendo assim, como vi eu a mulher sem olhos? Esta foi a pergunta que fiz a mim mesmo. Que a vi, é certo, tão claramente como os estou vendo agora. Os mestres da ciência, os observadores da natureza humana lhe explicarão isso. Como é que Pascal via um abismo ao pé de si? Como é que Bruto viu um dia a sombra de seu mau gênio?

O seu caso é talvez mais simples que esses todos; o desvario do doente foi contagioso, e fez com que o senhor visse o que ele supunha ver.

Pois é pena! exclamou o desembargador; a história de Lucinda era melhor que fosse verdadeira. Que outro rival de Otelo há aí como esse marido que queimou com um ferro em brasa os mais belos olhos do mundo, em castigo de haverem fitado outros olhos estranhos? Crê agora em fantasmas, D. Maria do Céu?

Maria do Céu tinha seus olhos baixos. Quando o desembargador lhe dirigiu a palavra, estremeceu, ergueu-se. O bacharel também se levantou, mas foi dali a uma janela — talvez tomar ar — talvez refletir a tempo no risco de vir a interpretar algum dia um hebraismo da Escritura.

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