I
José S. P. Vargas era o péssimo dos procuradores: só procurava para os outros. Após vinte anos de incessante trabalho, por sóis e chuvas, muita canseira e muita humilhação, achava-se ele no mesmo ponto de onde partira, com a diferença que partira aos vinte anos e só, e tinha agora mulher e dois filhos. A odisséia de um desses lutadores do foro está ainda por escrever. Se alguém a fizer, há de sair-lhe menos brilhante e variada que a outra, mas pode ser que mais triste ainda que monótona, ou talvez por isso mesmo.
Mas não tratemos agora do procurador nem das suas peregrinações. Tratemos do filho dele, Silvestre, um descorado menino de quinze anos, melancólico, taciturno, metido consigo, flor nascida em lugar de pouco sol, prestes a dobrar o cálice, para a terra, de onde veio. Silvestre custara à mãe dores infinitas; talvez por isso era mais amado do que a irmã, menina de doze anos, viva, alegre, refeita, a vender saúde por todos os poros. O pai compensava a filha, amando-a mais do que ao irmão. Ao cabo, ambos os pais queriam a ambos os filhos, com uma leve nuance e nada mais.
José Vargas fez ensinar ao filho as primeiras letras, que era o mais que lhe podia dar. Silvestre aprendeu consigo um pouco de francês. Aos catorze anos, o pai quis fazê-lo seu ajudante na procuradoria; mas a organização franzina do pequeno era pouco auspiciosa para tais labutações. Pareceu-lhe melhor metê-lo em um cartório, onde ele se habilitava para escrevente juramentado, e mais tarde escrivão ou tabelião, não saindo assim dos limites do foro a dinastia dos Vargas.
Silvestre não exprimiu a menor objeção acerca de tais planos. Ouviria acaso alguma coisa do que diziam dele? Sozinho, a olhar para o ar, com a cabeça entre as mãos, parecia dominado por uma idéia fixa. Seus olhos, grandes e brilhantes, encerravam toda a vida que fugira do resto do corpo. Com os cabelos lisos, incultos e caídos sobre as têmporas, dava uns ares remotos de Bonaparte, mas um Bonaparte mais do pensamento que da ação, e muito menos másculo. Na família, a opinião aceita é que Silvestre era doente — doente de alguma coisa física — ou coração ou baço — ou vermes. Da alma não podia ser, o pequeno não tinha desgostos. A família acreditava que a alma só adoece de desgostos.
As noites eram gastadas por ele, em grande parte, a ler um tomo velho comprado a um algibebe, certo dia em que a mãe lhe deu algum dinheiro. Ninguém sabia o que era o livro, que estava escrito em francês; mas a mãe achou natural explicação daquele amor às letras desde que a filha lhe deu notícia de que a obra era lardeada de estampas. Era claro que os bonecos divertiam o menino. Infelizmente, Silvestre descuidou-se um dia e deixou-o sobre a mesa de jantar. O pai viu-o, abriu-o e confiscou-o.
— Um pirralho a folhear retratos de mulheres nuas!
Silvestre chorou lágrimas de desespero no interior da alcova. A mãe, que o livrara do castigo já planejado pelo procurador, foi consolá-lo da perda, não menos que aconselhá-lo a não perverter-se com estampas desonestas. O pequeno ouviu-a, mas continuou a chorar, até que a própria dor adormeceu, os olhos secaram e a esperança lhe animou o rosto. A primeira quantia que pôde obter foi destinada a outro exemplar da obra; andou por algibebes, catou estantes e gavetas, durante uma semana e mais, até que descobriu o exemplar suspirado. Se tivesse achado um brilhante não ficaria mais contente. Meteu o livro entre a camisa e a pele e guiou para casa, onde o escondeu a sete chaves, tendo cuidado daí em diante em o não deixar rolar por cima das mesas.
Assentado que Silvestre entraria para um cartório de escrivão, foi esta ordem transmitida ao pequeno, que enfiou, mas não resistiu. Pelo contrário, alegrou-se muito, quando o pai lhe disse que era preciso ganhar a vida por si, e que, se tivesse juízo, brevemente podia ver o fruto do seu trabalho. Silvestre dispôs-se a seguir pontualmente os conselhos de seu pai e foi para o cartório. Ali deram-lhe papéis a copiar, autos a coser, serviço em que ele, posto lhe repugnasse, empregava o melhor da atenção que Deus lhe dera. Mas, como tinha muita vez os olhos no ar e o pensamento alhures, errava laudas e laudas, copiava-as de novo, com dispêndio do papel e da paciência do escrivão. O fiel do cartório tomou-lhe ojeriza; ele caricaturou o fiel, e este pequeno incidente ia cortando a fortuna forense de Silvestre. Passou, e com ele iam passando os dias, com grande enfado do pobre menino, que perdia a esperança das vantagens prometidas pelo pai.
Um dia, passando Silvestre pela Academia das Belas-Artes, viu-a aberta; entrou, pediu para ver alguns quadros. A simplicidade do pedido desviou a idéia de qualquer objeção. Demais, a comoção do pequeno era visível; era por força comoção de artista. Quando ele de lá saiu, duas horas depois, tinha o olhar alucinado, o pulso febril, o passo trêmulo. A vista das salas e dos alunos fascinava-o, revolvia-o todo. Vira com os olhos os quadros da Academia; com o espírito viu-o uma infinidade de obras-primas, e sobre todas elas uma que ele trazia em si, inédita, virgem, à espera de ver o sol, de a saudarem os séculos. Essa obra-prima não era a caricatura do fiel do cartório, menos ainda os traslados do escrivão. Silvestre vagou longo tempo pelas ruas da cidade. Quando cansou, refletiu no que lhe cumpria fazer para substituir a pena pelo pincel; e concluiu que era pedi-lo ao pai. Assim disposto, dirigiu-se para casa onde entrou alegre como nunca o vira a família. Entrou; foi ter com o livro misterioso, abriu-o e contemplou com a alma toda. Era uma história da pintura, entremeada de gravuras representando painéis célebres. As mulheres nuas que tanto irritaram o procurador eram umas Vênus e Bacantes, ali inseridas entre as Virgens de Correggio e Rafael. Silvestre fartou-se de contemplar as obras e releu a história de alguns pintores. A ambição não lhe falava na alma; ele não perguntava se o futuro lhe daria as palmas do Dominiquino e Rembrandt. Não; o que lhe pulava dentro era um painel que ele devia fazer, uma idéia, um sentimento, alguma coisa sublime que tinha necessidade de traduzir na tela e legar à imortalidade.
Nesse mesmo dia, Silvestre pediu à mãe que o tirassem do cartório e o mandassem para a Academia. A mãe sorriu tristemente do pedido do filho; mas descarregou a consciência de mãe transmitindo-o a seu marido. O procurador vivera até ali na ignorância do que podia valer a pintura, salvo para fazer alguns retratos, e isto mesmo nem era já aplicação sensata depois do daguerreótipo, então em plena posse de ambos os mundos. Quando a mulher lhe falou no desejo do pequeno, limitou-se a erguer os ombros; mas indo ele fazer-lhe pessoalmente o pedido, José Vargas irritou-se deveras.
— Tu estás doido? disse ele agitando as narinas. Pois hás de ganhar a vida a borrar pano!
Silvestre tentou fazer entender ao pai que não era precisamente o que ele queria, mas a potência intelectual do procurador não ia até compreender a Transfiguração. O pai cortou a palavra ao filho e devolveu-o ao cartório.
Não havia mais que obedecer, Silvestre obedeceu.
Passados os primeiros dias, o pequeno levantou o espírito do abatimento em que o lançou a recusa paterna. Achava meio de sair a certas horas, em certos dias, e voltava ao edifício das Belas-Artes. Ali travou conhecimento com um dos alunos, tornou-se íntimo; alcançou confidências; fez-lhe algumas, e quando a amizade se achou cimentada — o que custa pouco entre rapazes —, obteve em casa do aluno as primeiras lições de desenho. Mostrou-lhe então alguns ensaios que fizera a ocultas; o aluno admirou-se da espontaneidade do talento e não acreditou que ele não tivesse tido mestre.
— Não tive nenhum, respondeu Silvestre com simplicidade; copiei algumas gravuras que tenho num livro.
Alcançou algumas lições: mas o mestre, vendo um dia que o discípulo lhe era superior, sentiu-se humilhado e suspendeu o obséquio. Silvestre colheu desde logo os primeiros espinhos. Não desanimou, nem era caso disso. O que aprendera era bastante para desenvolver-lhe o talento; atirou-se à arte com o melhor de seu coração. Imberbe como Rafael, não se acreditava menos votado à glória ainda que para ele a glória não eram os aplausos dos homens, mas só o fato de produzir alguma coisa. Quando lhe pareceu que ia bem no desenho, experimentou o emprego das tintas; arranjou uma tela, armou um cavalete, e trabalhou consigo. Ao cabo de muita tentativa, convenceu-se de que lhe faltava ainda muita coisa. Voltou à Academia, a pretexto de visitar o antigo mestre, mas com o único fim de observar como ele e os outros trabalhavam. Um professor do estabelecimento reparando na atenção com que ele assistia às lições e descobrindo-lhe no olhar alguma coisa superior, travou amizade com ele e deu-lhe na sua oficina lições particulares e práticas, que o rapaz aprendia com rapidez incrível. O desinteresse e o desvelo do professor falaram na alma de Silvestre, e deram-lhe, com as noções da arte que ele adorava, uma alta idéia de generosidade dos homens. O aluno era escravo do mestre; o mestre era pai do aluno.
A ambição de Silvestre — não digo bem — a necessidade de Silvestre era trazer à luz do sol e à contemplação dos homens uma Vênus que ele tinha na cabeça. No prefácio da obra sobre belas-artes que ele comprara ao algibebe lera o rapaz que o cristianismo expulsara os deuses pagãos do céu; Silvestre ignorava o que fossem deuses pagãos, mas alguns retalhos de frases do mencionado livro lhe deram idéias mais ou menos exatas do paganismo. Imaginava ele pintar uma Vênus expulsa do céu, com uma expressão e uma atitude inteiramente novas. O professor, homem de seu tempo, forcejava por arredá-lo de assuntos puramente clássicos; infundia-lhe o espírito do século. A natureza americana, a história moderna, a mesma história pátria, os costumes e as lendas nacionais podiam dar-lhe assunto a um painel superior; Silvestre não abria mão de Vênus. O livro dominava-o; a primeira leitura enfreava-lhe o espírito.
— Percebo, disse-lhe um dia o professor, você tem na cabeça um ideal de beleza, é-lhe preciso transcrever na tela; escolhe Vênus que era a deusa das graças. Vá lá; faça esse quadro; voltará depois aos meus conselhos.
Não é preciso dizer que a Vênus e o escrivão eram inconciliáveis, e que, uma vez metido com tintas não podia Silvestre seguir com a mesma atenção os traslados e as certidões. Assim que o trabalho diminuía, as certidões saíam erradas, e o que mais era, o escrevente gazeava com freqüência o cartório. As coisas chegaram a tal ponto que o escrivão preferia vê-lo ausente. Um dia, porém, demorado um traslado por culpa de Silvestre, não teve o escrivão outro remédio mais que contar tudo ao procurador. Este notara algumas vezes a ausência do filho; mas no dia em que o escrivão lhe contou que as ausências eram multiplicadas e a desatenção do rapaz sem remédio, ficou mais consternado do que se lhe tirassem todas as procurações.
— Maroto! exclamou o pobre pai. Vou dar-lhe uma lição mestra. É a mania dos bonecos! Não cuida em outra coisa.
A lição foi comutada em repreensão graças à intervenção da mãe de Silvestre.
— Hás de ser homem do foro, quer queiras quer não! Perorou José Vargas. O foro é que te há de dar o pão; não hão de ser os panos pintados! Ou trabalharás como eu quero, ou vou meter-te no Arsenal de Guerra. Pelintra! Abusar da confiança de um homem honrado, estragar-lhe os papéis, comprometê-lo quase! Isto suporta-se? Sai! Vai-te embora!
A última palavra era um grito do coração do procurador, em quem o olhar doce e lastimado do filho começava a influir. Silvestre recolheu-se à alcova com a alma dilacerada. Tinha então quinze anos; via já claramente que devia renunciar a uma das duas coisas: a arte ou a família. O amor e a vocação lutaram nele com armas de igual têmpera; áspera e pertinaz refrega que acabou afinal, não pela vitória, mas pela esperança — a esperança de conciliar o cartório e a oficina. A solução consolou-o, como sabem consolar todas as quimeras. O pai mandou-o chamar.
— Resolvi tirar-te do cartório, disse ele, saboreando a alegria vã do filho; vais ser escrevente do dr. Luís Borges. Não só serás seu escrevente, mas até irás morar com ele. Virás ver-nos aos domingos, ou de mês em mês, conforme te portares.
Silvestre lançou-se-lhe aos pés.
— Adeus! exclamou o pai; não percas tempo, que é aborrecer-me. Resolvi e não recuo.
Nem os rogos da mãe nem os da irmã puderam demover o procurador da resolução assentada. Força era obedecer. A mãe de Silvestre tratou de o aconselhar a proceder bem, com o fim de ver se afrouxava o ânimo do pai; a irmã desfazia-se em lágrimas; o procurador afogava a comoção em rapé.
O dr. Luís Borges que José Vargas tirava assim da algibeira, como um chicote para castigar o filho, estivera com o procurador duas horas depois da repreensão que este fizera ao rapaz. O procurador contou-lhe as suas mágoas, a repugnância do filho ao trabalho forense, a inclinação de desenhar retratos.
— A maior parte do tempo consome-a naquilo, disse ele. Se não fosse franzino eu já o tinha metido no Arsenal ou em alguma outra parte, em que o obrigasse tal ou qual disciplina. Não sei realmente o que espera ele da...
— Mas já viu alguma pintura dele?
— Eu sei lá! uns rabiscos e pinceladas, que não entendo. Mas, ainda que entendesse aquilo é lá ofício que deixe lucro?
O advogado torceu a pêra, consertou a gravata e disse:
— Vou propor-lhe uma coisa.
— Diga!
— Seu filho precisa de um freio, não é? Pois eu me encarrego de o pôr a bom caminho. Faço-o meu escrevente, trabalhará debaixo da minha inspeção. Mas, não sendo isso bastante, convém que ele venha viver comigo; sairá do escritório para casa, e de casa para o escritório. Fá-lo-ei trabalhar, de modo que esqueça as tais pinturas. Serve-lhe?
A proposta era tão inesperada que o procurador não pôde responder logo; tudo entrava em seus cálculos, menos separar-se do filho. Contudo, a oferta era tão generosa, a proteção do advogado tão útil, que fora erro e descortesia não aceitar. O procurador aceitou, com muito agradecimento. Assentou-se que Silvestre iria na segunda-feira próxima para casa de Luís Borges.
Silvestre empacotou os seus pincéis, telas e cavalete, o seu livro de artes, alguns desenhos, vários esboços, enrolou tudo em folhas verdes de esperança, engolindo muita lágrima, e declarou-se pronto a seguir seu destino. O pai comoveu-se na ocasião de o abençoar, mas disfarçou o abalo dizendo ao filho:
— Vai com Deus! Se trabalhares com afinco e zelo, há em ti um bom tabelião.
— Não, murmurava o coração do adolescente, há em mim uma obra-prima.
II
O dr. Luís Borges morava na praia da Gamboa, numa casa elegante, ainda que pequena, construída à custa de muitas razões finais. Era homem de quarenta anos, casado com uma gentilíssima senhora de vinte e cinco, sem filhos nem parentes, quase sem amigos. A fortuna não era nem surda nem solícita aos rogos do advogado; era como a maré que ele via das janelas todos os dias; enchia e vazava. Ele tinha a virtude de não esmorecer com as vazantes nem alucinar-se com as enchentes. Laboremus era a sua máxima.
Quando Silvestre ali apareceu, no dia ajustado, acabava o dr. Borges de ler as folhas e preparava-se para ir ao almoço. O pai fez entrega do filho e saiu. O pequeno ficou trêmulo e sem voz.
— Venha cá, meu rebeldezinho, disse o advogado; venha sem medo. Com que então, em vez de copiar autos, V. M. dá-se à pintura?...
Silvestre não ousava levantar os olhos do chão. Não se sentia triste somente, mas irritado e indignado. Não falava porque não podia; mas dado que pudesse, é provável que não rompesse o silêncio.
Luís Borges caminhara para ele, com a mão esquerda ergueu-lhe a cabeça, e contemplou-lhe alguns segundos as feições finas, os olhos rutilantes de juventude e esperança, a fronte amassada de talento e ambição. Ao mesmo tempo, Silvestre, que até então não olhara em cheio para o advogado, pôde ver-lhe o rosto, que ele supunha ser peludo e tétrico e achava simplesmente franco e amorável.
— Há aqui alguma coisa, murmurou o advogado.
Silvestre corou até a raiz dos cabelos.
— Que tem pintado você?
— Quase nada.
— Alguma coisa, ao menos.
— Mas tão pouco!
— Há de deixar-me ver.
— Não posso; são esboços sem valor. Quando eu fizer uma grande obra, sim.
— Olé! Já pensa nisso?
— Não penso em outra coisa.
— Mas, menino, ninguém chega a uma grande obra sem passar por obras pequenas. Engatinha-se antes de andar. Eu quisera vê-lo engatinhar.
Silvestre não disse palavra.
— Tem o pudor do incompleto! pensou o advogado. Sabe que seu pai trouxe-o para cá, continuou ele em voz alta, para que trabalhe e se deixe de pinturas. Eu, porém, permito-lhe que pinte.
Silvestre quase desmaiou. Agarrou-se às mãos do advogado, como a pedir-lhe que repetisse o que acabava de dizer. Riu-se o advogado da alegria do pequeno, e, não só lhe disse que podia pintar em suas horas vagas, mas até que, se visse algum trabalho sério, de onde pudesse concluir que havia nele talento, lhe arranjaria um professor. A alma de Silvestre respirou largamente, livre do infortúnio que a oprimia; achava um protetor, onde cuidava ir buscar um algoz. Podia enfim ser artista!
E de saber que Luís Borges, apesar dos seus quarenta anos não perdera os entusiasmos juvenis, nem algumas das ilusões da primeira idade. Cria na arte, na glória, na poesia. Quando José Vargas lhe contou desanimado a vocação do filho e a necessidade de refreá-la a fim de lhe dirigir o espírito para alguma coisa mais útil, ou menos eventual, Luís Borges alegrou-se com a idéia de haver descoberto um artista e a de concorrer para desenvolvê-lo. Tal foi o motivo da proposta que lhe fez. Também ele tivera ambições, que o tempo levou, como leva outros tantos pedaços da alma. Agora, sentado nas ruínas da juventude, contentava-se em espraiar a vista pelo mar largo da juventude alheia.
Ia pois mudar a vida de Silvestre; seu gênio achava enfim uma pátria. O advogado mandou-lhe preparar uma sala e uma alcova, que havia no sótão da casa; duas janelas davam para o mar. Ele poucas vezes vira o mar, quase toda a vida esteve confinado em sua casa do bairro dos Cajueiros. Quando estendeu os olhos pela água adiante, a alma estremeceu, como o cavalo ao ouvir o clarim da guerra. Também ele ia pelejar, a dura e gloriosa peleja da arte, que o seduzia e arrastava, e que o mataria se ele não acudisse de pronto. Silvestre encostou-se à janela e deixou-se ir ao sabor de seus pensamentos; lembrou-lhe a mãe, a irmã e o pai, de quem ia viver separado doravante, e ficou triste; mas a idéia de que lhes pagaria as saudades com muita glória o consolou da tristeza, e lhe levantou o espírito.
Os aposentos que lhe deram estavam alfaiados com o estritamente preciso; ainda assim não fosse, ele não repararia em nada. Sua melhor mobília eram os seus quinze anos. Tirou da caixa que trouxera os objetos necessários à arte, os pincéis, as telas, os desenhos; pôs as coisas em ordem, mas de modo que, em caso de entrar um estranho, pudesse esconder tudo. Feito isto, entrou a contemplar mentalmente a sua Vênus inédita; corrigiu um braço, avivou o colorido, dispôs melhor um acessório. A atitude não o satisfazia de todo; melhorou-a, mas reparou que a mudança prejudicava a luz, e voltou à primeira correção. O olhar não lhe parecia assaz expressivo; prometeu trabalhá-lo até alcançar a vida que lhe queria dar. Não é possível dizer com certeza que tempo gastou ele nessa contemplação e emenda, a verdade é que acordou quando o vieram chamar para jantar.
Luís Borges recebeu-o no gabinete, e os dois passaram à sala de jantar onde a mulher do advogado esperava por eles. Seguiu-se uma apresentação galhofeira, um jantar que a Silvestre pareceu de príncipe, muito carinho dos donos da casa, nada menos que a felicidade para o pobre rapaz. Silvestre, entretanto, comeu pouco; o acanhamento e as saudades não eram de desafiar o apetite. Não ousou sequer olhar para a mulher de Luís Borges, que aliás lhe falava com uma voz que devia sair da mais gentil de todas as bocas humanas.
Camila era o nome dessa moça, modelo de graça indolente e nativa elegância. Imaginem uma mulher, não alta, mas airosa, flexível como uma serpente, meiga como uma pomba; pondo-lhe no rosto cor de leite dois olhos pardos e vivos, um nariz reto como os das estátuas gregas, considerai-lhe a fronte lisa e pensativa, as curvas do colo, a perfeição do braço, e tereis a esposa de Luís Borges, e não a tereis toda, porque falta ainda a alma de toda essa figura, a alma que se derramava por toda ela e era uma coisa mais fácil de sentir que de explicar. Parece que lhe falam os próprios dedos — foi a primeira expressão de Luís Borges ao vê-la pela primeira vez, dez anos antes, isto é 1855, quando ela tinha apenas quinze anos e ele trinta. Três meses depois estavam casados. Uma vez casados, extinta a lua de mel, não se extinguiu o amor, que aliás nunca fora violento, senão pacífico, moderado e igual. Mas a conveniência deu lugar a novas descobertas. Camila, dizia um dia o marido, tem um gato no cérebro. Explicava ele deste modo as alternativas de carícia e arreganho da mulher, a indolência das idéias, a irritação fácil e a fácil docilidade.
Informada da história de Silvestre, Camila tratou-o com a mesma simpatia do marido, disposta como ele, a deixar que o gênio do jovem artista se desenvolvesse em plena liberdade. A figura de Silvestre fez ainda aumentar o interesse que sua história despertara nas duas almas sensíveis. Aquela palidez poética, o profundo e rutilante dos olhos, o véu de melancolia com que ele parecia esconder-se às vistas do mundo, mas através do qual se distinguia o traço da vontade e da perseverança, o próprio acanhamento das maneiras, faziam dele uma criatura interessante e original. Não lhe era preciso arrombar a porta dos corações; eles a abririam por si.
Era pois a vida de Silvestre a mais deliciosa coisa do mundo: trabalhava de manhã no escritório; de tarde e antes do almoço pertencia ao estudo; os domingos eram todos seus. Fechava-se para trabalhar à vontade. Mais de uma vez, Luís Borges pediu-lhe para ver os trabalhos; ele recusava-o sempre. Quando cansava, encostava-se à janela e esquecia-se a contemplar o mar e o céu. O ideal fundia-se no infinito; o artista ficava só com a sua criação.
Um dia, voltando do escritório, achou aberta a porta de seu aposento. Junto da janela viu Camila de pé, a contemplar um desenho, uma cabeça de Harpia, copiado de um modelo acadêmico. Antes de saber o que era, Silvestre correu agitado para a moça.
— Não tenha medo, disse esta; eu sou pessoa de segredo. Estava aqui admirando a sua inspiração. É magnífica!
Silvestre estendeu a mão para pegar no desenho.
— Não vale a pena disse ele; são esboços...
— Ciumento!
Camila proferiu esta palavra com tanta graça, que era impossível resistir-lhe; Silvestre esperou que ela acabasse o exame.
— Dá-me este! disse ela.
— Não posso; dar-lhe-ei outro melhor.
— Deixe ver.
— Mais tarde.
— Mentiroso!
Silvestre obteve o desenho e apressou-se a guardá-lo; só então reparou que deixara uma pasta sobre a mesa. Na pasta havia outros estudos; Camila, porém, só chegara a ver aquele. Enquanto ele guardava cioso os frutos de suas horas vagas, a mulher de Luís Borges admirava a fronte rafaelesca de Silvestre; a timidez graciosa de seus movimentos, os olhos plenos de vida espiritual.
— Escondeu tudo? perguntou ela.
— Tudo; tenho vergonha de deixar ver coisas tão grosseiras. Quando eu fizer alguma obra melhor, não terei dúvida em mostrá-la.
— Você pensa que me contento com tão pouco? disse Camila depois de curto silêncio.
Silvestre não sabia que dizer.
— Não, continuou ela; há de mostrar-me o que tem feito; quero apreciar os progressos de seu talento; numa palavra, não quero ser público. Deixe ver!
Silvestre tinha todos os seus estudos e preparos dentro de um grande baú, encostado a uma das paredes da sala. A moça caminhara para ele; ele correu a sentar-se no baú.
— Perdoe-me, disse o rapaz, eu lhe mostrarei depois; procurarei alguma coisa que seja digna de seus olhos.
A lisonja tem uma virtude rara; Camila, ouvindo o cumprimento de Silvestre, sorriu e parou. Foi a primeira vez que Silvestre atreveu-se a olhá-la de rosto, mais de um minuto. A atitude da moça, sua beleza característica, a expressão do olhar, tudo parecia próprio a impressionar um artista. Silvestre ficou literalmente fascinado; e Camila sentiu a impressão que lhe produzia.
— Pois bem, disse ela; consinto em esperar, procure alguma coisa digna de meus olhos... Meus olhos são bonitos?
— Oh! muito!
— Criança!
E dando uma volta ao corpo, Camila saiu da sala, desceu a escada, deixando o pobre rapaz ainda enlevado daqueles poucos minutos de conversa. Ergueu-se o filho do procurador e foi contemplar o mar, da janela aberta, com a cabeça cheia de todos os seus sonhos. Uma voz lhe dizia dentro:
— É esta a Vênus; este é o modelo da tua obra imortal. Tua visão incorporou-se, fez-se mulher, falou-te e ouviu-te. Tens a deusa; podes expulsá-la de teu espírito, que é o céu pagão. Eia! ao trabalho! transmite enfim aos homens o pensamento que te faz viver.
Quinze anos tinha, mas sentiu-se homem naquela suprema ocasião. Nessa mesma tarde cuidou de lançar ao papel os primeiros lineamentos do esboço. Não pôde; não se dominava ainda bastante. Mas não desanimou; trabalhou parte da noite a reproduzir a atitude e a expressão da figura, tais quais as tinha na mente. No dia seguinte estava pronto o trabalho preliminar. Pronto? Ele o desfez e inutilizou, como indigno do seu modelo. Não era ainda aquilo; quase desanimado, volveu à obra, até que ela lhe saiu perfeita.
Silvestre sentiu as primeiras alegrias da maternidade. O esboço era apenas esboço; não tinha ainda as proporções, a cor, a vida, o movimento; mas era o ovo prestes a soltar a ave misteriosa da sua inspiração. Guardou-o cuidadosamente e cuidou de preparar a tela.
Entretanto, Camila não esquecera a promessa do rapaz; não lha lembrava nunca em presença do marido; essa reserva pareceu a Silvestre uma prova de discrição, própria a captar-lhe a confiança. A insistência devia ao mesmo tempo falar à vaidade de Silvestre; não falou, porque ele ainda a não tinha; era cedo para conhecer esse verme do talento.
Durante uma semana, sofismou Silvestre o cumprimento da promessa; a resistência não pôde ir além, e ele cedeu. De seus primeiros trabalhos, todos cópias mais ou menos incorretas, escolheu o que lhe pareceu melhor, era justamente a Harpia que ela lhe surpreendera naquela tarde. Camila recebeu-a com expressões de exagerado entusiasmo, contemplou-a, beijou-a, escondeu-a.
— Promete que não mostrará a ninguém? disse ele timidamente.
— Prometo.
Desse minuto em diante, Camila tornara-se a confidente natural e zelosa do jovem artista; ele lhe dizia suas esperanças, seus planos de futuro; falava-lhe ingenuamente da obra-prima com que queria dotar o mundo.
— Mas o que é? perguntava a mulher de Luís Borges.
— Depois verá. Tenho lá em cima a tela em que hei de reproduzir o painel que trago na cabeça; logo que comece a trabalhar fecharei a sala de modo que ninguém lá vá quando eu estiver fora.
— E se eu tiver outra chave?
Silvestre pôs as mãos em ar de súplica. A simplicidade do movimento desarmou a moça. Ela prometeu que não iria surpreendê-lo nunca; mas impôs uma condição.
— Desejo ser a primeira que veja o quadro.
Silvestre respondeu que sim. Nessa ocasião, Luís Borges entrou na sala em que eles estavam; Camila continuou uma história que não havia começado, com tal arte e prontidão, que assombrou o rapaz e lhe tirou os últimos receios. A moça fazia-se cúmplice da glória.
III
Quinze dias depois, o procurador foi à casa de Luís Borges, a fim de ver o filho. Havia dois meses que ele não punha os pés em casa do pai. A mãe receava menos ainda a moléstia do que a ingratidão do filho; o procurador, entretanto, estava de algum modo satisfeito com a ausência do rapaz.
— Venho ver o nosso pequeno, disse ele logo que entrou; minha mulher supõe que tenha havido alguma moléstia...
— Nada há, respondeu o advogado. Está são como um pêro.
— Tanto melhor. E trabalha?
— Muito.
— Bravo! Acostuma-se enfim ao trabalho. Talvez ainda fale da mania das pinturas... Não importa! há de perder a idéia com o tempo.
— Espírito chocho! dizia consigo o advogado olhando para José Vargas; mal sabes tu que preparo talvez a glória do teu nome.
Silvestre desceu a ver o pai, e dispôs-se a acompanhá-lo até a casa. Na rua, interrogado acerca da longa ausência, não achou resposta adequada; não queria confessar as preocupações da arte e repugnava-lhe mentir. José Vargas venceu a dificuldade respondendo logo depois da pergunta.
— Já sei, disse ele; andas atarefado com o trabalho. Não importa! Com ele é que te hás de achar. O foro não dará a todos um palácio; mas com honra, trabalho e economia pode dar honesta abastança...
José Vargas continuava uma série infinita de reflexões, ajustadas ao caso mas alheias ao espírito do filho. Enquanto o pai falava, ele deixava-se ir atrás do sonho favorito. Em casa a alegria turbulenta da irmã e as lágrimas puras da mãe tiveram a virtude de o fazer baixar daquelas nuvens à terra sólida das afeições domésticas. Poucas horas bastaram para matar muita saudade e aquietar muita aflição. Silvestre esqueceu ali, por algum tempo, os sentimentos de outra ordem. Caindo a noite, despediu-se não sem prometer que voltaria na seguinte semana; José Vargas foi com ele até meio caminho; logo que o deixou, Silvestre seguiu rápido para casa.
Camila esperava-o com ansiedade; ele encontrou-a carinhosa e risonha. Luís Borges chegou pouco depois; conversaram da família de Silvestre, algum tempo, antes do chá. Quando Silvestre se despediu dos dois protetores, disse o advogado à mulher.
— Menti hoje ao pai deste pequeno; disse-lhe que o filho está absolutamente entregue aos meus trabalhos, quando a verdade é que só os faz por desempenho de obrigação. Ora, se efetivamente tivéssemos ali um talento, uma esperança, um futuro, a mentira era piedosa e o resultado viria justificá-la; mas que sabemos nós da aptidão de Silvestre? Coisa nenhuma. Estamos a embaçar o pai, sem proveito para o filho; é leviandade pelo menos.
Camila fez um gesto para falar.
Que é? perguntou o marido.
— Nada, disse Camila depois de um silêncio. Esperemos; algum tempo ainda e ele nos dará...
— Quisera contratar-lhe um mestre, mas se nada vejo do que ele faz... Já lhe propus fazê-lo entrar para a Academia; recusou, porque o pai havia de opor-se.
Camila tivera idéia de mostrar ao marido o desenho que Silvestre lhe dera e tal foi o motivo de seu primeiro movimento; mas a promessa feita ao rapaz de que não o mostraria a ninguém, fechou-lhe a boca. Agora, insistindo o advogado, ela ouvia em sua consciência uma voz remota que dizia: “Não tenhas segredo para teu marido”. Ao que outra voz mais próxima respondia: “Lembra-te da promessa que fizeste”. Insistia a primeira: “Olha, não cedas a uma puerilidade”. Acudia a segunda: “Tua palavra é um contrato”. E uma e outra falaram ainda longo tempo, enquanto Luís Borges, supondo ter um diálogo com a mulher, ficara reduzido a um simples monólogo.
No dia seguinte, que era domingo, começou enfim Silvestre o famoso painel que trazia dentro de si. Como se datasse uma era nova, o jovem artista marcou a hora e o minuto em que lançou na tela os primeiros traços. Ele tinha a força dos criadores, que é ao mesmo tempo a fraqueza dos iludidos: a convicção de um grande papel debaixo do sol. Quantos, diante da tela ainda nua ou da folha de papel imaculada, não crêem que vão trabalhar para os séculos e não chegam a trabalhar para uma semana? Silvestre tinha essa crença ingênua, poderosa e vivaz. Ele ia dar ao mundo uma Vênus nova, melhor que as outras, mas digna irmã delas.
Camila foi ter com ele na primeira ocasião azada. Ele cobriu com uma toalha o encetado painel apenas ouviu os passos da moça; mas o gesto não tinha já o terror do primeiro dia; era antes coquetice que outra coisa.
— Já trabalhando! exclamou ela.
— Já.
— Vou-me embora.
— Não, ainda não.
— É algum retrato?
— Não é retrato.
Camila aproximara-se da tela; pegou na ponta da toalha, em ação de a levantar. Silvestre não obstou o movimento; ela não insistiu. Ambos davam assim uma prova de confiança e docilidade apreciada reciprocamente.
— Só lhe peço uma coisa, disse Camila.
— Que é? Diga.
— Não falte à promessa que me fez.
Silvestre respondeu com um gesto de assentimento. Era o mais que podia fazer na ocasião, porque não tinha voz; todo ele era olhos para a beleza incomparável de Camila. Vinha a moça num desalinho intencional — um meio de o familiarizar com ela, e mais que nunca viu Silvestre que não era outra a sua Vênus, não podia ser outra. Camila baixou os olhos com um gesto de Diana.
O jovem artista abriu então as suas pastas de esboços e estudos; um por um mostrou-os todos à esposa de Luís Borges. Eram corretos? Camila não podia dizê-lo; achou-os, todavia, lindíssimos.
— Oh! se você me ensinasse a desenhar! exclamou ela.
— Eu? Sou apenas discípulo.
— Discípulo!
— Discípulo da natureza e de mim mesmo.
Camila refletiu um instante.
Pois bem, disse ela; não me ensine; não desejo roubar-lhe o tempo. Mas...
— Diga!
— Era capaz de fazer o meu retrato?
— Talvez.
Camila interpretou esta palavra como uma afirmação, e agradeceu-o com tão infantil alegria que fez sorrir Silvestre, não tanto de orgulho como de curiosidade.
— Mas não fale nada ao Luís — recomendou a moça.
— Por quê?
— Eu lhe peço.
— Pois sim; será uma surpresa para ele quando vir o retrato pronto.
Logo que Silvestre se achou só, pareceu ter colhido nova soma de inspiração. Um bafejo criador guiou o pincel do jovem artista. Daquele dia em diante a ocupação exclusiva do rapaz era o painel. Luís Borges comprava-lhe tudo o que era necessário à obra.
— Quero colaborar de algum modo em seu trabalho, dizia ele.
E consigo:
— Se quando ele o tiver pronto, não me mostrar coisa que valha a pena, força é reconduzi-lo ao foro, onde deverá então ficar, porque é melhor ser um bom escrivão do que um pintor detestável.
No meio do trabalho adoeceu a irmã de Silvestre. O pai foi um dia buscá-lo para ir vê-la, porque o estado era grave, e ele não queria que os dois irmãos se separassem sem uma palavra derradeira. Silvestre foi, travou algumas frases com a enferma e regressou à Gamboa. Luís Borges dirigiu-lhe uma repreensão amigável de que o pagaram largamente os olhos de Camila. Três dias depois faleceu a irmã; ele foi a casa, demorou-se lá até o dia seguinte de manhã; pela volta do meio dia regressou à casa de Luís Borges, penalizado com a morte, mas obcecado pela idéia que vivia.
O painel seguia seu caminho. Algumas horas furtadas ao trabalho, eram passadas ao pé de Camila, em uma doce confabulação íntima; ele bebia nos olhos dela a inspiração exausta em longas horas de aplicação. Depois volvia ao trabalho. Cada dia que passava como que arrancava o rapaz às cogitações deste mundo; ele vivia de uma vida extática e inconsciente. Não se lembrava já de ir visitar seus pais. Se o advogado lhe lembrava esse dever, ele saía de casa para ir a vinte passos sentar-se na praia, com a sua Vênus diante de si. A mãe sentia a ausência, mas o pobre José Vargas cria firmemente que ele vivia preocupado e ocupado com os papéis do foro.
— Além disso, dizia ele, não sei que me parece obrigar o pequeno a vir aqui, quando o dr. Borges nos faz o favor de lhe dar casa, comida e educação. É natural que ele trabalhe em paga disso.
— Mas, José, um minuto ao menos que ele viesse ver-nos...
— Um minuto! Só em andar gastava ele mais. Descansa; ele virá quando puder.
Não podia, não iria nunca. Silvestre já não pertencia ao mundo das coisas externas. O mundo para ele, estava limitado nas dimensões da tela. Nem já dava aos trabalhos que o advogado lhe cometia aquela atenção com que a princípio correspondera aos sentimentos dele. Luís Borges desistiu de o ocupar mais; compreendeu a causa da desatenção e dispensou-o de ir ao escritório. Assim os dias todos eram passados em casa, entre o painel e Camila.
Um dia, enfim, após algumas horas de trabalho, Silvestre desceu e foi ter com a mulher do seu protetor. Ela estremeceu ao ver-lhe as feições transtornadas. Interrogou-o e a resposta tranqüilizou-a. Nada acontecera que prejudicasse a obra.
— Tive uma vertigem, murmurou ele.
— Uma vertigem! Anda descansar um pouco.
Silvestre estava ainda pálido; sentou-se; a moça ficou diante dele alguns minutos.
— Quer saber uma coisa? perguntou Camila. Você trabalha muito. Não quero mais isso; agora há de fazer o que eu mandar.
Silvestre abanou a cabeça.
— Não é esse trabalho o que me faz mal, disse ele; é outro; é este. Dizendo isto o moço bateu com o dedo na testa. Camila, com as mãos arredou-lhe os cabelos, olhou para a testa silenciosamente, e pousou-lhe um beijo leve e úmido. Silvestre não corou, sentia a mesma impressão de conforto que lhe davam os beijos de sua mãe. Ergueu-se e subiram os dois. Na ocasião de descer, Silvestre, apesar de incomodado, cobrira instintivamente o painel.
— Não vá trabalhar agora, disse Camila.
— Por que não?
— Porque eu não quero.
Silvestre insistiu; ela repetiu-lhe a proibição, não já com a voz doce, mas com alguma coisa da irritação felina. Silvestre cedeu de má vontade; encostou-se à janela e estendeu os olhos ao mar. No fim de algum tempo, ouviu um pequeno grito. Voltou-se. Camila erguera a ponta da toalha que cobria o painel, levantara a pouco e pouco até descobri-lo todo. Silvestre não correu para ela; deixou-se ficar de costas para a janela, a olhar para as duas Vênus.
Era o sentimento da arte que lhe arrancara o grito, que lhe abria extraordinariamente os olhos? Não; era a simples vaidade de moça bonita. As feições da Vênus eram as suas. Camila correu enfim para o pintor, pegou-lhe nas mãos e beijou-as.
— Magnífico! magnífico! exclamava ela.
Silvestre contemplava o quadro com igual admiração. A Vênus, expulsa do céu, descia pelo ar abaixo, com os olhos voltados para cima, uns olhos travados de cólera, mas de cólera triste e impotente, que são as quedas definitivas. Os cabelos, soltos no éter, pareciam a derradeira auréola da divindade. As mãos comprimiam o peito, os joelhos dobravam-se molemente; a figura despenhava-se levada pelo vento da morte. O painel não estava pronto; e, ainda pronto, faltar-lhe-ia muita coisa que a mão inexperiente do artista lhe não dera. Contudo, era a aurora de um magnífico dia.
Camila não cabia em si de contente. Ele explicou-lhe o pensamento da composição, que a moça ouviu com a mão dele presa entre as suas.
— A senhora há de perdoar, se tive o atrevimento...
Camila respondeu com um muxoxo de faceirice que bem exprimia a vaidade satisfeita. O painel era a sua própria apoteose. Que importava que a Vênus ali pintada fosse apenas uma Vênus, em vez de uma Santa Cecília e fugisse do céu em vez de caminhar para ele? Era o seu retrato, tanto bastava. A vaidade, porém, não falava no ânimo do artista; ele via a moça radiante, como um aplauso e não se deixava levar do aplauso. Contemplava a obra, ainda longe do ideal que desejava dar ao mundo; via só o que estava feito e o que havia por fazer.
Dali em diante, Camila foi admitida a vê-lo trabalhar no painel; ele retificava uma linha contemplando-lhe o rosto, avivava a expressão dos olhos fitando os dela. Camila orgulhava-se da obra; e nunca o famoso gato que o marido dizia haver no cérebro da moça se agitou mais freqüentemente, nem mais súbito passou do mole afago à áspera irritação. A mulher de Luís Borges parecia subir ao céu à medida que Vênus descia; as ocupações caseiras eram-lhe já agora insuportáveis; ríspida com todos, quase só era afável com o rapaz.
Enfim o painel foi concluído, certo dia em que o advogado e a mulher saíram a jantar fora. De noite, Silvestre deu a notícia ao advogado.
— Sim? clamou este. Não lhe quero dar um abraço antes de ver a obra; mas prometo-lhe que se for qual a esperamos, fica com duas costelas partidas.
Silvestre sorriu.
— Verá amanhã de tarde, disse ele.
De manhã acabado o almoço, Camila subiu ao aposento do jovem pintor. O painel estava descoberto; Silvestre sentado na borda da janela que era baixa, contemplava a namorada. Não a viu entrar, não lhe ouviu os passos sequer. Camila parou a olhar para ele. Ao cabo de alguns minutos, aproximou-se lentamente; de pé, ao lado do artista, também ela ficou largos minutos a namorar a obra. Quanto tempo ali estiveram? Nenhum deles poderia dizê-lo. Silvestre acordou enfim; a sua mão, entre as de Camila, tremia de comoção.
— Não é tudo o que eu sonho, disse ele; mas respiro enfim, porque eu precisava tirar isto de mim.
Camila não lhe disse nada, seu rosto, sereno e expansivo alguns minutos antes, tornara-se sombrio e o olhar aterrado.
— Que é? perguntou Silvestre.
— Não me havia lembrado nunca... este quadro... Se outros o virem, se for exposto ao público... ver-se-á o meu retrato...
— E então?
— Luís não há de querer.
— Mas por quê?
— Ora, você bem sabe... são escrúpulos. Oh! Luís não há de consentir nunca! Mas que loucura foi a nossa?... Eu devia tê-lo impedido desde que você começou.
A comoção crescia; a moça andava de um para outro lado, ora falando a Silvestre, ora consigo, Silvestre fê-la parar, segurando-lhe em uma das mãos.
— Descanse, disse ele.
— Como?
— Não aparecerá o quadro em público.
Os olhos de Camila responderam primeiro que os lábios.
— Sim? disse ela.
— Afianço-lhe.
— Mas...
Descanse; será um quadro de família; ficará no lugar mais escondido da casa, ou no mais público, à vontade do dr. Borges.
Camila voltou os olhos para o quadro.
— Mas então, disse ela tristemente — perderá você a reputação; seu trabalho não será visto de ninguém.
— Que importa? Eu tinha necessidade de o fazer, não de o expor. É bonito?
— Delicioso!
— Isso me basta!
Silvestre voltou a sentar-se na borda da janela. Aproximando-se a moça, referiu ele minuciosamente toda a sua curta vida, curta para os fatos, longa para os sentimentos. Estes, sobretudo, ninguém os conhecia ainda; só ele podia repetir as comoções sentidas, as lutas anteriores, os sonhos desfeitos e renascentes, labutar da vocação, que acha obstáculos em cada pedra do caminho e os doma e vence. A moça ouviu-o com a mais terna e submissa das atenções. Era uma alma que se despia diante dela, que lhe confiava os mais íntimos segredos.
— Mas, disse ela quando ele acabou — se não me tivesse conhecido teria feito a sua Vênus tão bonita?
Silvestre pôde refletir e não responder. A resposta afirmativa ou não, seria a expressão da verdade? Mas a mulher de Luís Borges insistiu; força era dizer alguma coisa.
— Não faria, murmurou ele.
— Jura?
— Não são coisas que se jurem; mas creio que não podia fazer tão bonita, se a não conhecesse.
Oh! eterna vaidade! A resposta de Silvestre encheu de luz e alegria o rosto da moça; ela agarrou-lhe as mãos e beijou-as. Casto era o movimento; mas a viveza foi tal que o pobre rapaz empalideceu e entrou a olhar assustado para a Camila. Os olhos da moça, pregados nele pareciam devorá-lo. Nunca a fatuidade olhou mais complacentemente, nem com tanto fogo, mas também nunca a alma de um rapaz foi mais iludida. Silvestre, com as mãos para trás, fincadas no telhado, parecia querer fugir à moça.
Vaidoso! pensou Camila. Depois proferiu risonha este gracejo insulso: — Se Luís morresse, você casava comigo?
— Não! não! murmurou Silvestre.
Camila recuou dois passos da janela; a palidez de Silvestre assustava-a. Ia a falar, mas já ele não a podia ouvir, atirando o corpo para trás rolara pelo telhado abaixo até a rua; Camila soltou um grito...
Agora, o melhor era ir buscar o jovem pintor vivo e são, fazer com que os dois se explicassem; restituí-lo à família e pendurar o quadro. Mas se as coisas não se passaram assim! O rapaz morreu; Camila enlouqueceu quase; os pais não tiveram nenhuma consolação na terra — nenhuma, além da memória do filho.
A morte teve uma explicação: o delírio do talento satisfeito. Foi a explicação de Luís Borges e dos pais do artista. Mas há outra explicação muito mais exata; Silvestre iludiu-se; viu um gesto de amor onde havia uma alteração de vaidade ingênua. E tendo obtido tudo o que queria, que era a beleza de Camila, fugia-lhe desde que lhe supôs a oferta do coração.
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